quinta-feira, agosto 30, 2007

AINDA UMA VEZ- ADEUS!

GONÇALVES DIAS
I
Enfim te vejo! - enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!
II
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
III
Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esperança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!
IV
Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.
V
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!
VI
Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias - bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
VII
Oh! se lutei!... mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?
VIII
Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t'esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T'esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu, quinhão de dor!
IX
Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!
X
Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
"Ela é feliz (me dizia)
"Seu descanso é obra minha."
Negou-me a sorte mesquinha...
Perdoa, que me enganei!
XI
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
XII
Enganei-me!...
- Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra.
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu'era...
E um louco fui, nada mais!
XIII
Louco, julguei adornar-me
Com palmas d'alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
C'o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.
XIV
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera...
E eu! eu fui que a não quis!
XV
És doutro agora, e pr'a sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!
XVI
Dói-te de mim, que t'imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
XVII
Adeus qu'eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
XVIII
Lerás porém algum dia
Meus versos d'alma arrancados,
D'amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; - e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, - de compaixão.

quarta-feira, agosto 29, 2007

CONFESSO: EU TE AMO

JOAQUIM ITAPARY


Do jornal, pedem-me crônica para um caderno especial a ser publicado no dia 8 de setembro, por motivo do transcurso dos 395 anos da fundação de São Luís. Ora, bem, por que devo esperar tanto tempo para declarar o meu amor a esta cidade, a estes chãos e ladeiras, becos e telhados? Não dá. Sei que nesse suplemento cronistas de maior talento louvarão a esta senhorial e bela
cidade, mais nossa do que do senhor Luís, rei dos franceses. Então, vou logo re-ratificando (como o fazem os oficiais de cartórios, legalmente dotados de fé de ofício) a minha paixão por esta terra. Desde quando ela completou 350 anos, há quarenta e cinco anos, eu venho reiterando esse meu amor.
Uns dizem que São Luís esta velha demais, toda cheia de rugas. Suas ruas e praças, becos e escadarias, telhados e balcões, oitões e cimalhas, beirais e algerozes, cancelas, bandeiras, rótulas, postigos, ferrolhos e aldravas, estariam acabados pelo longo tempo de serventia a tantas gerações de gentes ingratas, descuidadas, mal-agradecidas, desleais e, sobretudo, insensíveis à sorte de uma cidade que é mais que isso, é mais que esse belo conjunto de coisas materiais: é mãe e mestra amantíssima, carinhosa guardiã de valores culturais e espirituais que adquirimos, queiramos ou não, por transmissão genética.
É elementar que uma cidade com 395 anos de vida está bem perto de ser quatrocentona. Que fazer diante dessa inarredável
realidade? Essa pergunta pode bem ser respondida com outras: Quando a nossa mãe vai envelhecendo, ficando com a pele engelhada, cabelos brancos, juntas endurecidas, olhos e ouvidos inservíveis a suas funções originais, memória enevoada, o que fazem os bons filhos? Não cuidam de sua saúde? Não lhe fazem festas? Não enchem a casa com os alegres ruídos dos netos, dos bisnetos? Não partem um bolo onde plantaram tantas velas luminosas quantos sejam os anos a comemorar? Não servem o brinde de honra em sua homenagem? Pois bem, é exatamente isso o que se espera dos bons filhos de São Luís, no próximo dia oito de setembro: Festas, alegrias, foguetes, missa, espetáculos culturais, exposições de arte, música nas praças.
Presumo ter sido durante toda a vida um bom tetraneto desta cidade fantástica. Que já não é mãe apenas, mas uma tetravô especialmente amorosa, dessas que enxugam lágrimas e pensam feridas de adversidades e derrotas, acalentam, ninam e adormentam depois das fadigas. Tão protetora e tão consoladora que jamais alguém será
capaz de desligar-se da barra de sua saia sem algum dia sentir irremediáveis dores de exílio e desterro, sofrer mágoas de solidão e
saudades insuperáveis.
Não há notícia de maranhense que haja emigrado em busca de maiores venturas que não tenha sofrido os tormentos dessa separação. Vejam-se os exemplos de Gonçalves Dias e Ferreira Gullar, de Lago Burnett e
Odylo Costa, de Franklin de Oliveira e Oswaldino Marques, de Josué Montello e Humberto de Campos. Há um visgo em
São Luís que prende, manieta, sujeita a quem nela nasça ou viva e àqueles que dela se acerquem, um cipoal que enleia a nossa alma, uma espécie de cadeia imaterial, sem paredes e sem trancas, sem ferrolhos e cadeados que nos encarcera e mantém cativos para o resto
dos séculos, sem escapatória.
Portanto, cubramos São Luís de carícias filiais, beijemos a sua velha face enrugada, amparemos a sua provecta caminhada de anciã que de nós todos espera amor, amparo, diligência, proteção. Ela não pede mais que carinho, zelo, cuidados. É tão pouco...
Não, não escreverei nenhuma crônica sobre a passagem dos 395 anos de vida de São Luís, para o caderno espacial do próximo dia 8. Como dito acima, outros farão melhor. Contudo, se Deus quiser, escreverei sobre os seus 400 anos de vida, em data que está bem ai. Aliás, não tão próxima a ponto de impedir que seus bons filhos e, especialmente, o Governo do Estado, a Prefeitura, as entidades civis e religiosas, programem (afinal, faltam ainda 5 anos inteirinhos) grandes festas em sua
homenagem. E que nessa homenagem se inclua, principalmente, a deflagração de um lúcido programa de preservação,
continuada e sustentável, desta cidade cujo
uso e gozo compartilhamos com toda a Humanidade, por decreto da ONU. Não para mumificá-la, mas para fazê-la, a cada dia, mais bela e mais fagueira. Uma Catita, como a cantou o poeta Fernando VianA.

terça-feira, agosto 28, 2007

VELHO OLHANDO O MAR

Affonso Romano de Sant'Anna


Meu carro pára numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m e vejo um velho vestido de branco numa cadeira de rodas olhando o mar à distância. Por ele passam pernas portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. Mas ele permanece sentado olhando o mar à distância.

O carro continua parado, o sinal fechado e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim. Tudo em torno era uma ávida solicitação dos sentidos. Por isto, paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele corpo que parecia ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esforço comecei a imaginá-lo quando jovem. É um exercício estranho esse de começar a remoçar um corpo na imaginação, injetar movimento e desejo nos seus músculos, acelerando nele, de novo, a avareza de viver cada instante.

A gente tem a leviandade de achar que os velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar fotos de sua juventude tinha sempre a sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa.

No entanto, aquele velho que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado.

Teria ele algum desejo ao olhar as coxas das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dança?

Me lembra ter lido em algum lugar que o inconsciente não tem idade. Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre "A velhice". E ali ela também apresentava uma estatística segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens.

Não sei porque, mas toda vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.

Mas esses senhores de short e boné branco que passam às vezes em dupla pelo calçadão, são mais atléticos que aquele que denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o mar.

Ele está ali, eu no meu carro, e me dou conta que um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra "aposentadoria" ultimamente. Isto é uma síndrome grave. Em breve estarei cercado de aposentados e forçosamente me aposentarão. Então, imagino, vou passear de short branco e boné pelo calçadão da praia, fingindo ser um almirante aposentado, aproveitando o sol mais ameno das 9h30m até cair sentado numa cadeira e ficar olhando o mar.

Me lembra ter lido naquele estudo de Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: "Morrer, prematuramente, ou envelhecer: não há outra alternativa." E, entretanto, como escreveu Goethe: "A idade apodera-se de nós de surpresa." Cada um é, para si mesmo, o sujeito único, e muitas vezes nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso: doença, ruptura, luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira vez na vida, eu me dizia: "Essa mulher que está sendo transportada numa padiola sou eu." Entretanto, os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história, porque nos atingem em nossa singularidade: velhice é um destino, e quando ela se apodera de nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. "O que se passou, então? A vida, e eu estou velho", escreve Aragon.

Meu carro, no entanto, continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o mundo com telefonemas, projetos e papéis. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira olhando mar à distância, a vida distante.

Mas que ao olhar para dentro eu tenha muito que rever e contemplar. Neste caso não me importarei que o moço que estiver no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá.

segunda-feira, agosto 27, 2007

TODA NUDEZ SERÁ ABENÇOADA

Há uma semana, finalmente terminei a leitura de Os cadernos de Don Rigoberto, romance de Mario Vargas Llosa. Eis o comentário da editora Planeta DeAgostini, que está na contracapa do volume: “Don Rigoberto é um metódico corretor de seguros cin-qüentão, com uma vida imaginária riquíssima. Ele, a bela Lucrecia – sua segunda mu-lher – e o menino Fonchito, nascido do primeiro casamento, formam o que o autor de-nomina ‘uma insólita família feliz’. São também os protagonistas de um desfiar de fábu-las eróticas e fantasias que Don Rigoberto anota em seus Cadernos durante as noites de insônia. Nelas, bem como nos textos analíticos ali presentes – por exemplo, sobre ques-tões estéticas da literatura e das artes plásticas -, a arte de amar é examinada em suas formas mais variadas e profundas, em seus níveis estéticos mais refinados”.
Um desses textos analíticos encontra-se na página 229 e o título é justamente o mote desta crônica: “Carta ao leitor de Playboy ou Tratado mínimo de estética”. Sou colecionador assíduo de Playboy desde 2002. Após ler atentamente a carta de Rigoberto, fiquei impressionado com a violência flagrante na crítica do autor. Mas é melhor deixar que vocês formem opiniões próprias a respeito.
Assim começa a carta: “Sendo o erotismo a humanização inteligente e sensível do amor físico, e a pornografia, seu barateamento e degradação, acuso-o, senhor leitor de Playboy ou Penthouse, freqüentador de antros que exibem filmes pornôs hard e de sex-shops onde se compram vibradores elétricos, consolos de borracha e camisinhas com crista de galo ou mitras arcebispais, de contribuir para que o atributo mais eficaz concedido ao homem e à mulher a fim de se assemelharem aos deuses (pagãos, claro, que não eram castos nem suscetíveis em questões sexuais como o que conhecemos) retorne veloz à mera cópula animal”.
O sujeito não quer saber de brincadeira. Mas no segundo parágrafo ele, que tanto cospe na moral sexual alheia que considera equivocada, mostra que é também roupa suja do mesmo balaio. Afinal de contas, no seu entendimento, a “finada e respeitabilís-sima” estadista de Israel, Golda Meir, e a “austera senhora” Margaret Thatcher, do Rei-no Unido (“que enquanto foi primeira-ministra nunca teve um cabelo que saiu do lu-gar”), são muito mais “fontes de sogreguidões eróticas” do que, digamos, Mônica Velo-so, Ana Paula Oliveira e Bárbara Paz. Pelo amor de Deus, Golda Meir e Thatcher! Por ser um personagem fictício, devo portanto imaginar um enforcamento em praça pública, para o cretiníssimo Don Rigoberto.
O trecho seguinte da carta, então, é um espetáculo: “Esse espécime de revista é um símbolo da avacalhação do sexo, do desaparecimento dos lindos tabus que costuma-vam cercá-lo e graças aos quais o espírito humano podia se rebelar, exercitando a liber-dade individual, afirmando a personalidade singular de cada um, e aos poucos criar o indivíduo soberano na elaboração, secreta e discreta, de rituais, condutas, imagens, cul-tos, fantasias, cerimônias, que, enobrecendo eticamente e conferindo qualidade estética ao ato de amor, o desanimalizaram progressivamente até transforma-lo em ato criativo”.
Ainda segundo o autor da carta, “a pornografia despoja o erotismo de conteúdo artístico, privilegia o orgânico sobre o espiritual e o mental, como se o desejo e o prazer tivessem como protagonistas falos e vulvas, e esses subsídios não fossem meros servi-dores dos fantasmas que governam nossas almas, e segrega o amor físico do resto das experiências humanas”. Pois ao senhor, Don Rigoberto, digo que Playboy (principal-mente) e suas congêneres tem como objetivo não o “barateamento e a degradação” do prazer sexual, mas a sua reconfiguração como forma de arte. Toda nudez deve ser aben-çoada, meu caro. Quanto à pornografia, excetuando-se suas categorias nada recomendá-veis, como a BDSM e as práticas com animais, não deve ser descartada como uma das fórmulas que buscam a realização da felicidade suprema – que, no fim das contas, trata-se do bom e velho bem-estar pessoal, individual e intransferível. E tenho dito.

sábado, agosto 25, 2007

CANÇÃO I

Luís Vaz de Camões
Fermosa e gentil Dama, quando vejo
a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,
a boca graciosa, o riso honesto,
o marmóreo colo e branco peito,
de meu não quero mais que meu desejo,
nem mais de vos que ver tão lindo gesto.
Ali me manifesto
por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo
nas lágrimas que choro;
e de mim, que vos amo,
em ver que soube amar-vos, me namoro;
e fico por mim só perdido,
de arteque hei ciúmes de mim por vossa parte.
Se porventura vivo descontente
por fraqueza de esprito, padecendo
a doce pena que entender não sei,
fujo de mim e acolho-me, correndo,
à vossa vista; e fico tão contente
que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei
se vós me dais a vida deste jeito
nos males que padeço,
senão de meu sujeito,
que não cabe com bem de tanto preço?
Mas ainda isso de mim cuidar não posso,
de estar muito soberbo com ser vosso.
Se, por algum acerto, Amor vos erra,
por parte do desejo cometendo
algum nefando e torpe desatino;
se ainda mais que ver, enfim, pretendo;
fraquezas são do corpo, que é de terra,
mas não do pensamento, que é divino.
Se tão alto imagino
que de vista me perco – peco nisto –,
desculpa-me o que vejo;
que se, enfim, resisto
contra tão atrevido e vão desejo,
faço-me forte em vossa vista pura,
e armo-me de vossa fermosura.
Das delicadas sobrancelhas pretas
os arcos, com que fere,
Amor tomou,e fez a linda corda dos cabelos;
e, porque de vós tudo lhe quadrou,
dos raios desses olhos fez as setas
com que fere quem alça os seus, a vê-los.
Olhos, que são tão belos,
dão armas de vantagem ao Amor,
com que as almas destrui;
porém, se é grande a dor,
co a alteza do mal a restitui;
e as armas com que mata são de sorte
que ainda lhe ficais devendo a morte.
Lágrimas e suspiros, pensamentos,
quem deles se queixar, fermosa Dama,
mimoso está do mal que por vós sente.
Que maior bem deseja quem vos ama
que estar desabafando seus tormentos,
chorando, imaginando docemente?
Quem vive descontente
não há-de dar alívio a seu desgosto,
por que se lhe agradeça;
mas com alegre rosto
sofra seus males,
para que os mereça;
que quem do mal se queixa,
que padece,
fá-lo porque esta glória não conhece.
De modo que, se cai o pensamento
em algüa fraqueza, de contente
é porque este segredo não conheço:
assi que com razões, não tão-somente
desculpo ao Amor de meu tormento,
mas ainda a culpa sua lhe agradeço.
Por esta fé mereço
a graça, que esses olhos acompanha,
o bem do doce riso;
mas porém não se ganha
cum paraíso outro paraíso.E assi, de enleada, a esperança
se satisfaz co bem que não alcança.
Se com razões escuso meu remédio,
sabe, Canção, que, porque não vejo,
engano com palavras o desejo.

quinta-feira, agosto 23, 2007

A HORA E A VEZ DE JOSUÉ MONTELLO

Ainda não li o livro, mas acredito que a duquesa de José Sarney valha mesmo uma missa. Não deixa de ser um tanto quanto bairrista o que afirmarei agora – uma vez que a arte literária deve mesmo ignorar fronteiras -, mas é muito bom ver a literatura maranhense em destaque. Como se sabe, o ex-presidente teve um de seus livros adapta-dos para o cinema e também autografou recentemente mais um romance de sua lavra. É por causa de exemplos assim, bem-sucedidos, que tenho a mais absoluta convicção de que um outro escritor daqui da terrinha pode e deve receber, como justa homenagem (entre tantas que tem recebido, desde seu falecimento), a reedição de seus romances.
Para quem não faz idéia de quem estou falando, saiba, ó mísero filisteu, que o assunto desta crônica é Josué Montello, o melhor de todos os romancistas maranhenses. Corro o risco de atrair a fúria dos admiradores (os que ainda estão vivos, imagino) de Coelho Neto e do próprio Sarney (estes, sim, muito vivos), mas sustento minha opinião desde que li Noite sobre Alcântara, Os tambores de São Luís e Cais da Sagração. Quanto à reedição, fico imaginando a cara de espanto que o presidente da Academia Maranhense poderia fazer, se por acaso interessar-se em ler estas bem-traçadas linhas. “Mas, meu filho”, exclamaria, “são 26 livros!”. É, eu sei. E daí? Tenho certeza de que algum empresário ou político apaixonado pela literatura poderia bancar essa tarefa. Lembro-me que a Nova Aguilar, tempos atrás, lançou, em uma edição luxuosa, alguns dos “Diários” de Montello.
Hoje, retomei O Silêncio da confissão. A crítica da Editora Nova Fronteira – que lançou a obra – talvez seja melhor do que qualquer argumento que eu possa expor, a fim de defender essa grande homenagem a Josué: “Tanto na sua técnica quanto na sua urdidura, este novo romance de Josué Montello é um perfeito romance policial, com o clima de suspense que caracteriza esse tipo de narrativa moderna. Grandes mestres do roman-ce psicológico, como Dostoievsky, em Crime e castigo, e Georges Bernanos, em Um crime, souberam dar ao romance policial a categoria de obra de arte, de tal modo que, conhecidos os dados fundamentais de sua intriga, o romance tem ainda uma autonomia própria, decorrente da perfeição da forma e do processo de composição da urdidura”.
Querem mais argumentos? Os tambores de São Luís é considerado um dos prin-cipais livros escritos no Brasil. Foi incluído no currículo de literatura brasileira de diversas universidades francesas, integrou a lista dos cem maiores livros de língua portu-guesa do século XX, organizada pelo jornal O Globo e mereceu ser adaptado em forma-to de roteiro para documentário.
Há meses não visito a Casa de Cultura batizada com o nome do mestre de Jane-las fechadas. Para quem não sabe, a Casa fica na rua das Hortas, esquina com a rua do Coqueiro, no Centro. Eu descobri sua existência nos tempos de estudante, quando tudo o que tinha a fazer era tirar notas boas (o que nem sempre conseguia) e curtir o dolce far niente dos adolescentes da classe média. Lembro-me de um trabalho de Literatura Brasileira que precisava fazer. Na época, nem se falava de Internet – o que tornava obrigatória a visita à Biblioteca Pública Benedito Leite, onde conheci Deuziane, entre outras tantas beldades. Nesse aspecto, graças a Deus, sempre tive muita sorte.
Eu precisava de um livro de José de Nicola. Lembro-me que fui atendido por um rapaz que, se tivesse dinheiro como tinha má vontade, hoje seria mais endinheirado do que Bill Gates. Pois ele não encontrou o livro. Para que eu não ficasse sem fazer o tal trabalho, ele sugeriu uma visita à Casa de Cultura Josué Montello. Perguntei onde fica-va. Não foi difícil encontrá-la. Se tem algo que aprecio muito fazer, faz tempo, é cami-nhar pelo centro desta cidade, que deveria receber um melhor tratamento daqueles que a desgovernam. E lá na Casa de Cultura, fui muito bem recebido e consegui fazer meu trabalho. Também não posso esquecer: nesse local, pela primeira vez li Noite sobre Alcântara. Desde então, Montello nunca deixou de figurar nas minhas estantes.

terça-feira, agosto 21, 2007

O NEPOTISMO

EMERSON GARCIA

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça, Pós-Graduado em Ciências Políticas e Internacionais e Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa

I. A origem do termo
Etimologicamente, nepotismo deriva do latim nepos, nepotis, significando, respectivamente, neto, sobrinho. Nepos também indica os descendentes, a posteridade, podendo ser igualmente utilizado no sentido de dissipador, pródigo, perdulário e devasso. (1)
A divulgação do vocábulo (ao qual foi acrescido o sufixo ismo), no sentido hoje difundido em todo o mundo, em muito se deve aos pontífices da Igreja Católica. Alguns papas tinham por hábito conceder cargos, dádivas e favores aos seus parentes mais próximos, terminando por lapidar os elementos intrínsecos ao nepotismo, que, nos dias atuais, passou a ser associado à conduta dos agentes públicos que abusivamente fazem tais concessões aos seus familiares. (2)
O nepotismo, em alguns casos, está relacionado à lealdade e à confiança existente entre o "benemérito" e o favorecido, sendo praticado com o fim precípuo de resguardar os interesses daquele. Essa vertente pode ser visualizada na conduta de Napoleão, que nomeou seu irmão, Napoleão III, para governar a Áustria, que abrangia a França, a Espanha e a Itália. Com isto, em muito diminuíam as chances de uma possível traição, permitindo a subsistência do império napoleônico. Em outras situações, o "benemérito" tão-somente beneficia determinadas pessoas a quem é grato, o que, longe de garantir a primazia de seus interesses, busca recompensá-las por condutas pretéritas ou mesmo agradá-las. Como ilustração, pode ser mencionada a conduta de Luiz XI, que presenteou sua amante Ana Passeleu com terras e até com um marido (João de Brosse), o que permitiu fosse elevada à nobreza.(3)
Nepotismo, em essência, significa favorecimento. Somente os agentes que ostentem grande equilíbrio e retidão de caráter conseguem manter incólume a dicotomia entre o público e o privado, impedindo que sentimentos de ordem pessoal contaminem e desvirtuem a atividade pública que se propuseram a desempenhar.

NEY FARIAS TAMBÉM RESPIRA CULTURA JURÍDICA.

segunda-feira, agosto 20, 2007

A CATEDRAL

Alphonsus de Guimaraens


Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

sexta-feira, agosto 17, 2007

Rosário

Vinícius de Moraes
E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma môça que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre o meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzinho de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-Cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado.
Lembro que longe, nos longes
Um gramofone tocava,
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona n'água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana-brava.
Senti, à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só aquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe pra quem, quem sabe!
Mas como me perseguia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade.
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.

A rosa de Hiroxima

Vinícius de Moraes
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosaDa rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

segunda-feira, agosto 13, 2007

KALIFORNIA DRIM

All the leaves are brown and the sky is gray/ I’ve been for a walk on a winter’s day/ I’d be safe and warm if I was in L.A./ California dreamin’ on such a winters day. Assim começa “California Dream”. John e Michelle Phillips assinam a composição. A pequena Kalifornia Drim, 9 anos, não soube me dizer onde seu pai ouvira a música. Mas agora isso não é tão importante. Ele está morto. Foi assassinado. Depois do enterro, Kalifornia fugiu de casa.
Também não sei onde ela morava. Não me disse. Na verdade, estava mais concen-trada em matar a fome. E era uma senhora fome. “Ainda tava escuro quando saí de casa”, contou. No momento em que ela começou a devorar o frango do primeiro prato que apare-ceu em sua frente, eram quatro horas da tarde. Pouco mais de treze horas de viagem, consi-derando que pode ter saído por volta das cinco horas da manhã.
Meu nome é Daniel Mendes. Eu não sou ninguém. Nenhum cara famoso. Não. Não é verdade. Sou alguém, sim. Alguém que deu azar tanto no jogo quanto no amor. É, eu sou uma droga de um jogador compulsivo. Jogo apostado desde os onze anos. E minhas apostas sempre foram altas. Jogava comigo quem tinha grana. Não perdia meu tempo com trocados. Zé-Ninguém não tinha chance comigo. O “danadão” aqui não percebia que ele era o maior Zé-Ninguém de todos. Porque, como já disse antes, eu perdia mais do que ganhava. Bem mais, com certeza. Também demorei muito a perceber que, se eu não estava nem aí para as misérias alheias, da mesma forma ninguém não dava a mínima para as minhas.
Confirmei isso na rodoviária de São Bento. Eu estava arrasado. Detonado mesmo. Porque desta vez minhas apostas insanas custaram-me bem mais do que meras questões financeiras. Por causa da minha loucura, perdi minha família. Esposa e filhas. De uma vez. Derrotado, tudo o que me restou foi caminhar até o terminal rodoviário, a fim de esperar o ônibus que me levaria de volta para São Luís.
A cidade estava tranqüila, naquele começo de tarde. Por causa do sol forte, ninguém ocupava os bancos de mármore da praça em frente à rodoviária. Não demorou muito, apa-receu um ônibus, pelos lados do hotel principal. Não era o que eu aguardava. Esse chegaria duas horas depois. O ônibus entrou lentamente no terminal. Quando finalmente parou e o motorista abriu a porta, desceram uma sexagenária com excesso de lipídios e o próprio mo-torista – que segurava a mão da pequena Kalifornia Drim.
É claro que, nessa hora, eu não sabia que o nome dela era esse. Apenas acompanha-va atentamente o desenrolar da situação, para ver no que ia dar. O motorista levou-a ao gui-chê da empresa para a qual ele trabalhava. A jovem magricela e sem-graça com quem ele conversou abandonou seu posto. Em seguida, ajoelhou-se diante da menina e perguntou o nome dela.
“Kalifornia Drim”, disse a garotinha. A moça e o motorista riram. Ele mais do que a outra, porque o ouviu primeiro, antes de chegar a São Bento. Olhei para o itinerário indica-do no veículo. Havia acabado de chegar da região sul. Em seguida, esperei a reação da gu-ria às risadas. Fiquei impressionado com a seriedade dela. Era uma menina negra, cujo ves-tido verde-claro apresentava manchas de suor. Seu cabelo pixaim parecia à prova de pente. Mas na verdade não esqueço do olhar de Kalifornia. Um olhar sério e, ao mesmo tempo, muito triste, de quem já viu muitas tristezas ao longo de toda uma existência.
Também havia uma folha de papel branco, dobrada, que sua mão direita segurava firme. Os dois risadinhas não a perceberam. Antes de voltar ao trabalho, o motorista suge-riu à moça que telefonasse para a delegacia. “Deixa ela com o Osmar”, concluiu. No caso, o Osmar era o delegado da cidade. Em seguida, voltou ao trabalho. Fechou a porta do ônibus. Também muito devagar, o veículo saiu da rodoviária. A velocidade só aumentou depois que contornou a praça.
“Menina, fica ali naquele banco, tá?”, disse a jovem sem-graça. Ela não devia ter mais de 20 anos. Seu cabelo tinha cor de ferrugem. “Vou terminar um serviço e depois ligo pra delegacia. Daí, voltou para o guichê, concentrou-se na leitura de uma pequena pilha de documentos... e apagou da lembrança a pequena Kalifornia.
A guria deu sinal de esperteza. Olhou para mim e caminhou na minha direção. “Moço, o senhor pode comprar um lanche pra mim?”, perguntou. E assim começou esta história. Levei Kalifornia para um restaurante próximo à rodoviária. Nem pedi o cardápio à garçonete. “Traz o prato principal e uma cerveja pra mim”, falei. Enquanto não éramos atendidos, pedi a ela para me mostrar o papel que estava em sua mão. Era a certidão de nas-cimento dela. Li o nome duas vezes. Kalifornia Drim de Sousa Vieira. Pensei logo na músi-ca. Depois, perguntei a ela se sabia quem foi que decidiu esse nome. “Foi meu pai”, res-pondeu. Seus olhos brilharam. Pensei que fosse chorar. Isso não aconteceu. “Ele morreu”, acrescentou. Nisso, a garçonete colocou na mesa o primeiro prato – o de frango.
“Ele morreu de quê?”, perguntei. Ao mesmo tempo, despejei cerveja em um copo de vidro. “Mataram ele”, disse. De boca cheia, saiu mais ou menos assim: “Motaram elhi”. Achei graça. A garçonete também. A garçonete também era sem-graça – uma ruiva de um metro e setenta. Kalifornia Drim engoliu o que mastigava. “Meu tio deu uma facada nele”.
“Irmão dele ou da tua mãe?”, perguntei. “Dele”, a menina respondeu. E comia a uma velocidade impressionante. Estava mesmo faminta. “Minha mãe morreu também. Eu era bebezinha quando ela morreu”. Continuou comendo, até não sobrar um pedaço de fran-co e um grão de arroz. Mandei vir outro prato. Depois de algum tempo, a garçonete deixou na mesa um prato no qual fumegavam pedaços de carne de porco. Ela não pensou duas ve-zes. Atacou sua segunda refeição, sem nem tocar o refrigerante que também pedi. Imaginei que ela não fosse gostar da indigestão que provavelmente teria, mais tarde.
“O que você fazia naquele ônibus?”, perguntei. Ela não gostou. Eu claramente atra-palhava seu almoço. Mas não deixou de responder: “Eu fugi. Não queria ficar com minha tia. Toda vez ela me batia, quando meu pai não tava olhando. Ela e o marido dela”. Imagi-nei a guria saindo de casa de madrugada, sem ninguém perceber. Deve ter caminhado até um trecho de estrada e pediu carona. O primeiro motorista, ao invés de devolvê-la à família, ajudou a menina a continuar sua aventura. E assim foi, de carro em carro, ônibus em ôni-bus, até chegar à cidade de São Bento – onde encontrou um pobre-coitado moralmente fali-do. Acredito que não definição melhor do que esta, a meu respeito.
Após o terceiro prato (o peixe cozido), ela deu-se por satisfeita. Contrariou as mi-nhas expectativas: não passou mal, de tanto comer. “Obrigado, viu, moço”, disse. Perguntei se não gostaria de tomar um banho. Ou que comprasse para ela um vestido novo. Eu a teria ajudado. Mas queria fazer isso porque achava que assim me sentiria menos verme desprezí-vel. Menos canalha. Menos pusilânime. Ainda bem que Kalifornia recusou essa “ajuda condicionada”. Tudo o que queria era apenas continuar sua volta ao mundo em sei lá quan-tos dias. Nisso ajudei. Viajamos juntos até a cidade de Arari. Na rodoviária, ela agradeceu mais uma vez e desceu do ônibus.
A pequena Kalifornia Drim. Não sei onde deve estar, agora. Só espero que Deus a proteja dos lobos maus que aterrorizam este mundo.

EM SÃO LUÍS, 12 E 13 DE AGOSTO DE 2007.

domingo, agosto 12, 2007

É MUITA FALTA DE ABSURDO

Fiquei sabendo – e foi pessoa séria quem falou – que São Luís do Maranhão não faz parte da lista das “50 Melhores Cidades para Trabalhar”, divulgada pela revista “Você S/A”, da editora Abril. Se vacilar, esta capital pode não ser nem uma das 150. Mas nem tudo está perdido. Nossa Ilha querida ainda pode ser a terra das oportunidades... e para os oportunistas.
Quem trabalha no ramo de “acompanhantes”, então, está feito. Das universitárias completinhas à massagem com direito a bumbum, os anúncios multiplicam-se com im-pressionante facilidade. Estão mais fáceis que pão e pitomba na feira. Nada como ver pessoas honestas vencendo na vida com o suor do seu trabalho.
Jogadores de futebol de terceira categoria também podem se dar de bem, por aqui. Boleiros de terceira, que não vislumbram alternativa melhor do que atuar no fute-bol de quinta daqui do estado. Portanto, o sujeito tem que ser esperto e seguir a receita secreta que todo mundo conhece. Em primeiro lugar, seguir a moda contemporânea e gravar os gols em DVD. E os gols devem ser bonitos, para impressionar a patuléia que, de futebol, mal sabe o que é a bola. Depois de contratado, pedir logo adiantados dois meses de salário. Durante os jogos, fazer de conta que está no gramado de corpo presen-te. O passo seguinte é simular contusão. E quando a diretoria ameaçar demitir, avisar que entrará na Justiça se não forem pagos os outros meses previstos no contrato.
Professores, não venham para cá. Ou deixem para vir depois que alguém defe-nestrar essa raça que “comanda” este estado. Mas sempre há aqueles com tendências porno-erótico-sadomasoquistas. Gente que encontra o máximo de prazer até no mínimo de sofrimento. Imaginem esse tipo de pirado tendo verdadeiros orgasmos trepidantes ao abrir o “contrachoque”.
No caso dos jornalistas, imagino que o principal problema seja responder à mais capciosa das perguntas: “Será que eu trabalho no jornal que fica antes ou no que fica depois da ponte?” Ou então pode se aventurar pelo colunismo social. Mas aí tem que saber onde começa o elogio sincero e onde termina a bajulação vergonhosa. Ah, tem que ter um blog. Hoje em dia, qualquer hebreu não-praticante tem um. Eu já fiz o meu. Não tenho pretensão alguma de vê-lo sendo lido por paulistas, cariocas, cearenses, mar-cianos e incas venusianos. Para mim, já é grande honra e privilégio que Bruna Castelo Branco o visite, de quando em quando. Mas o de um candidato a candidato a jornalista deve receber pelo menos uma meia dúzia de três ou quatro comentários. Porque um blog que ninguém comenta é muita falta de absurdo.
Ah, já ouço a voz rouca da platéia (a meia dúzia de três ou quatro que achou estas linhas interessantes, coitados), a fim de saber: “Você recomenda o trabalho de revisão para quem estiver a fim de vir para cá?” Mas é claro que recomendo. Há filis-teus que escrevem muito mal. E o pior de tudo é que se acham, os miseráveis. Um revi-sor é necessário, sim. Ou vários revisores. Essas criaturas abnegadas, que, às vezes, ou-vem a música agourenta, que surge dos subterrâneos das redações para assombrá-los: “Lerê, lerê, lerê, lerê, lerê...”.
Para finalizar com uma conclusão definitiva, São Luís pode ser que um dia seja a terra das oportunidades. Pode ser que a capital maranhense possa um dia ser considera-da um Eldorado – um lugar em que todos são capazes de prosperar, e de maneira lícita. Nada parecido com senadores gananciosos e cheios de artimanhas. Nada parecido com espertalhões que usam “laranjas” para desviar recursos do Governo Federal. Nada pare-cido com abutres da aviação civil que estão muito mais interessados em lotar aviões sucateados do que assegurar o bem-estar dos passageiros. Um dia, haverá uma São Luís que todos vão considerar a “jóia da coroa”. Vai ser muita falta de absurdo se isso não acontecer.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Fanatismo

Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver !
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida !

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida !

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim !

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."

quinta-feira, agosto 09, 2007

Um braço de mulher

Rubem Braga


Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer.

Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.


O texto acima foi publicado no livro “Os melhores contos – Rubem Braga”, seleção de Davi Arrigucci Jr., Global Editora – São Paulo, e selecionado por Ítalo Moriconi para compor o livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 169.

terça-feira, agosto 07, 2007

GONÇALVES DIAS E O PV

Informa a Internet que o Partido Verde foi fundado em 17 de janeiro de 1986. Esta é uma das milhares de peças de ficção das quais está cheia a Grande Rede. Afinal de contas, a criação do PV ocorreu em meados do século XIX, com o advento do Ro-mantismo e graças ao empenho literário de Gonçalves Dias – não apenas o verdadeiro criador de uma literatura genuinamente brasileira, como também um dos primeiros poe-tas a se preocupar com temas que abordassem a preocupação com a ecologia.
O caxiense Antônio Gonçalves Dias nasceu a 10 de agosto de 1823. Portanto, todos nós que apreciamos a poesia devemos render ao autor de “I-Juca-Pirama”, nesta sexta-feira, as devidas homenagens. Há exatos 184 anos, um dos grandes mestres da literatura universal foi apresentado ao Brasil e ao Maranhão.
Essa qualquer estudante de Literatura Brasileira sabe, se não dormiu nas primei-ras aulas: durante muito tempo não tivemos uma literatura nacional. Depois que foram encontradas por navegantes portugueses comandados pelo ilustre Cabral, na hora zero entre os séculos XV e XVI, estas paisagens brasileiras, as letras (ou mesmo a possibili-dade de uma produção cultural relevante) foram relegadas a terceiro plano, ante a im-portância, em primeiro lugar, da exploração econômica da colônia recém-conquistada e, posteriormente, da catequese dos índios. Nesse momento, há uma literatura informativa (uma literatura no Brasil e não do Brasil), cujo expoente máximo é a carta de Pero Vaz. Quanto ao trabalho dos jesuítas na conversão dos gentios, aprendemos que os trabalhos de Manuel da Nóbrega e de Anchieta são os que apresentam qualidade inquestionável.
Sem encontrar explicações racionais para o mundo, e com o fortalecimento da Igreja Católica, o Barroco é a estética literária que traduz o pensamento da humanidade no século XVII: ela retoma a religiosidade do período medieval e o antropocentrismo do século XVI. Agora, o pensamento humano oscila entre pólos opostos: Deus x homem; céu x terra; espírito x matéria. Já o Arcadismo posiciona-se contra os dilemas barrocos e propõe uma literatura mais equilibrada e espontânea, buscando harmonia na pureza e na simplicidade das formas greco-latinas. Os poetas árcades propõem a volta à simplicida-de da vida no campo e o aproveitamento da vida presente. Esta proposta e a teoria do “bom selvagem”, de Rousseau, serão retomadas pela estética seguinte: o Romantismo.
E não dá para falar em Romantismo sem mencionar o indianismo. Quem (aque-les que realmente o leram no colégio, que é onde o livro é mais disseminado) não se lembra dos verdes mares bravios da terra natal de José de Alencar? Quem não se recor-da da virgem Iracema dos lábios de mel? Pois é: a Natureza – compromissada com o elemento nacional – comporta apenas um indivíduo que esteja, de fato e de direito, nela entrosado, e esse indivíduo é o silvícola. “No meio das tabas, de amenos verdores, al-teiam-se os tetos da altiva nação” indígena, à qual os poetas e prosadores do século XIX mais se apegaram, a fim de se orgulharem de um país que estava ainda em seus primei-ros passos tanto quanto à formação política e administrativa, quanto na questão literária.
A partir do talento de Gonçalves Dias, o elemento principal que norteia a força, por vezes desmedida, do indígena, é a Natureza. Prova disso é a intensidade com que se faz presente no Canto segundo d’Os Timbiras: “Desdobra-se da noite o manto escuro:/ Leve brisa sutil pela floresta/ Enreda-se e murmura, - amplo silêncio/ Reina por fim”. Como se percebe, há todo um trabalho de artes plásticas e música, com emprego de ri-mas e repetição de versos em momentos importantes da narrativa (no caso dos poemas épicos, como o I-Juca-Pirama). Esse mesmo processo criativo vejo na obra de José Chagas, apenas para citar um dos nossos poetas maiores contemporâneos. Mas falta os mestre d’Os canhões do silêncio o privilégio de ter fundado um partido político voltado justamente para as questões ecológicas, que colocasse a Natureza no topo da lista de prioridades pelo menos um século antes de todo mundo começar a pensar em “preservar o verde”. Gonçalves Dias criou o Partido Verde! Era o fraco!

sexta-feira, agosto 03, 2007

SENTIMENTO DE BRUNA

Todo santo dia, bem cedo pela manhã, Bruna Castelo Branco senta-se diante de seu computador e aceita o desafio de remover a neve da folha de papel. Ainda que, nesse caso, a “folha” tenha sido arquitetada pelo gênio humano.
Hoje, porém, algo inédito aconteceu. Com toda a página em branco à sua disposição, ela não conseguia dar à luz sua crônica. Ela concordava com Jô Soares: escrever é parir sem ser mãe. No que dizia respeito a Bruna, havia uma complicação muito séria em seu parto literário.
Entre aqueles que diariamente praticam a feitiçaria da escrita, muitos há que, durante algum tempo - se muito ou pouco, aí só os búzios podem responder -, perdem o contato com a estranha potência das palavras. Vejam vocês o meu exemplo: depois que a minha mãe faleceu, eu me vi incapaz de começar um romance cujo protagonista deveria ser o mar.
Um mar sem princípio nem fim. Um mar semelhante ao amor em que, para todo o sempre, está ancorado o coração de Bruna. Mas hoje o mar desse amor encontrava-se revolto. Por isso ela não conseguia escrever. O sentimento não estava no lugar certo. Encontrava-se na terra em que a humanidade se deixa atormentar pela solidão. Um lugar úmido, assustador e triste, no qual a esperança é uma casa de areia.
Desligou o computador. O gosto salgado de suas lágrimas pegou-a de surpresa. Então, enfim a vida lhe mostrou como era agridoce o sabor da saudade. E que as lágrimas também podem ser ingredientes da ausência.
No dia anterior, ela e o namorado discutiram feio. Bruna, ao recordar a briga, lamentou muito que tenha se originado a partir de uma prosaica discussão sobre quem torcia para o melhor time. Bruna desafiou o namorado a provar que o Comerciário era o melhor time do país. Ele perguntou a ela por que achava que o Santa Quitéria era um time “fabuloso”. Nada mais infantil e, por isso mesmo, nada mais absurdo.
Nenhum dos dois saberia explicar, se questionados, como ou por que o assunto mudou do vinho para o vinagre. Do futebol, passaram a apontar os pecados que cada um cometeu ao longo do relacionamento. Até que ofensas e acusações injustas, capazes de magoar e partir até o coração mais calejado, declararam o fim do combate. Antes de ir embora, ela disse que, “desse jeito, não dá”.
- “Desse jeito, não dá” - ela repetiu a si mesma. Suspirou. Sentia-se tola. Estúpida. Em seu quarto, a solidão regia sua melodia feita de sons pesados e negros.
Olhou para o relógio na parede. Estava na hora de tomar banho. Seu trabalho no jornal não se importava nem um pouco com seu bloqueio ou com seu coração, que perdera as asas e, talvez, nunca mais se libertasse do desencanto.
- “Desse jeito, não dá”. Não parava de repetir a tolice, enquanto a água fria espantava os últimos vestígios do sono. Pensou em telefonar para ele antes de sair de casa. Sim, daria o braço a torcer e pediria desculpas. Ele também errou, mas se dissesse isso, voltariam a trocar acusações, agressões e grosserias. A situação não sairia da estaca zero, e provavelmente Bruna chegaria na redação do jornal com os olhos vermelhos.
Voltou para o quarto. Era a imagem do desânimo. Abriu o guarda-roupa. Nesse momento, ouviu a campainha. Pensou que fosse o motorista do jornal. O chefe de reportagem lhe disse que deveria sair de casa direto para a primeira pauta do dia. Mais uma matéria sobre a dengue hemorrágica. Seu namorado trabalha à tarde e à noite. E não tem o costume de acordar cedo. A campainha de novo. Sem pressa, ela vestiu-se. Em seguida, reuniu o material de que precisava e caminhou até a porta. Abriu-a... e não conseguia acreditar.
Era ele. Ajustara o despertador para as primeiras horas da manhã. Há sempre uma primeira vez para tudo. Queria ver a luz do amor brilhar nos olhos da mulher que ama e pela qual é amado. Queria também pedir desculpas. Mas isso ficou para depois de um exemplo típico desses beijos nada técnicos de novela da Globo. Porque todo mundo merece um final feliz.

TENDA DOS MILAGRES

Este mundo é uma grande tenda dos milagres. Os milagres são considerados expressões do sobrenatural. Pode-se dizer que são fenômenos contrários às leis naturais. Para os crentes, obedecem a uma força superior: a de Deus.
Acredito que só Deus mesmo poderá explicar, no Dia do Juízo, os quatro mila-gres dos quais tomei conhecimento hoje, nesta primeira quinta-feira de agosto. Na Ar-gentina, um bebê prematuro dado como morto foi salvo pelo pranto. Na Índia, outro, com apenas um ou dois dias de vida, conseguiu sobreviver a 26 facadas. Uma criança de dois anos sobreviveu a um massacre, em um restaurante chinês, na Alemanha. E, ainda neste país, um gato salvou um bebê de hipotermia.
O mundo também é um vale de lágrimas, ai de nós. Principalmente para quem é criança. Aqui no Brasil, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (que atende tam-bém pela esquisita sigla ECA), com 267 artigos. O documento contempla todos os re-quisitos que, em princípio, levaria a infância a um amparo total. Mas só em princípio. A violência contra a criança, neste país, avança como uma epidemia, oculta pela falta de estatísticas, omissão da polícia, e o silêncio da população. Estimativas encontradas na literatura médica apontam que cerca de 10% das crianças levadas a serviços de emer-gência por trauma são vítimas de maus-tratos.
Volta e meia, as páginas policiais desta nossa Ilha de São Luís apresentam notí-cias sobre recém-nascidos abandonados em calçadas, à mercê da sanha devoradora de formigas. Ou então de pais bêbados que violentam as próprias filhas menores. Ou então de mães insensatas, que atiram fetos em lixeiros ou privadas.
Costumamos pensar que, em países desenvolvidos economicamente, as mentali-dades também devem ser diferentes. Mas é uma reflexão equivocada. Os pecados são os mesmos. Até porque não há diferenças entre o ser humano de Itapipoca do Norte e o do Cudumundistão. São os mesmos... mas também podem ser até piores, como no caso da criança brutalmente esfaqueada. Foram 26 golpes brutais. Ela teve fratura no crânio e intestinos expostos por um ferimento feito nas costas. O que leva a pensar também que há condenados que se comportam como animais selvagens. O menino chegou ainda com vida ao hospital. Mas até quando? Peço a Deus que tenha piedade deste pobre ino-cente.
E que livre de cães ferozes o heróico felino que, na distante Colônia, na Alema-nha, sob um frio tão intenso quanto o da Editoração deste jornal, salvou um bebê da morte por hipotermia. O menino havia sido abandonado na porta de uma residência. O gato miou e miou, até acordar o dono da casa. Os gatos já nascem pobres, como nos informa a música. Porém, há os que estão nesta vida para fazer o bem.
Ainda na Alemanha, houve, como dissemos, um massacre em um restaurante chinês. Impressionante como temos incrível facilidade para eliminarmos nossos seme-lhantes. Sempre que assisto ao filme A Lista de Schindler, não tenho como ficar indife-rente às cenas do extermínio de judeus no gueto. Pessoas colocadas em fileiras de três ou quatro e executadas com um só tiro. Tragédias que se repetem no filme, com o obje-tivo de mostrar às futuras gerações que alguns erros não devem nunca mais ser cometi-dos. E essa nova geração pode ser representada pela criança que sobreviveu milagrosa-mente ao massacre. Escapou ao amplexo da morte. Por enquanto. Os movimentos da odisséia humana na terra são totalmente incertos.
Tão incertos quanto os médicos argentinos que não sabem dizer quando uma criança está viva ou quando está morta. Ah, criança de Buenos Aires: teu choro serviu mais que salvar tua própria vida. É um brado a favor do futuro. É o canto que fortalece-rá a esperança em todos os corações do mundo – esta tenda de milagres tão inexplicá-veis quanto maravilhosos.

quarta-feira, agosto 01, 2007

CANÇÃO DA RIBEIRINHA

DE PAIO SOARES DE TAVEIRÓS

No mundo nom me sei parelha,
mentre me for' como me vai,
ca ja moiro por vos - e ai
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia que me levantei, que vos enton nom vi fea!

E, mia senhor, des aquel di' , ai!
me foi a mim muin mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós ouve nem ei
valia d'ua correa