Não fui quem
disse isso. Quem disse que perdemos a graça foi Thamia Tavares, nossa colega
aqui na Mirante. Ela estava certa. Hoje em dia, o nosso cotidiano ficou igual a
estes céus de março, aqui em São Luís: cinzentos e tristes.
Primeiro, todos
sabem, foi Chico Anysio. O criador de personagens maravilhosos como Nazareno,
Azambuja e Salomé lutou por vários meses contra graves problemas de saúde. Foi
um bravo, foi um forte, filho do Norte, mas enfim Deus resolveu que o Céu
precisava renovar seu elenco de magníficos comediantes.
Ontem,
foi a vez de Millôr Fernandes. Outro mestre na arte de fazer rir. Ninguém
melhor do que ele para apontar o ridículo de um comportamento – seja de um
determinado grupo social ou da sociedade por inteiro.
Meus amigos Reydner
Carvalho, Flávia Lopes e agora Laércio Campos sem dúvida alguma não gostarão
desse exemplo do pensamento de Millôr, mas não estou nem aí. Para ele, por
exemplo, “quando um grupo de pessoas pernósticas e incompetentes, chamadas
professores, ensina a um indivíduo sem gosto e vocação, uma série de noções
tolas ou, no máximo, discutíveis, consegue formar, no fim de uma dezena de
anos, essa coisa ao mesmo tempo ridícula e monstruosa que se chama um homem
culto”.
Millôr nasceu e
morreu no Rio de Janeiro. Na verdade, ele veio a este mundo como Milton Viola
Fernandes. O “Millôr” saiu da caligrafia duvidosa, com a qual o prenome aparece
registrado em seu registro de nascimento. No futuro, ele seria mais citado e
louvado pelos seus escritos, mas o “Vão Gogo” dos primórdios se destacava pelas
ilustrações. Em particular, prefiro os haicais (ou haikais, como queiram).
Muito antes do advento do Twitter, ele já dominava a arte de dizer muito com
muito menos.
“Viva o Brasil/
Onde o ano inteiro/ É primeiro de abril”.
“Esnobar/ É
exigir café fervendo/ E deixar esfriar”.
“Goze./ Quem
sabe essa/ é a última dose?”.
Com Chico Anysio
perdemos alguém que surgia na televisão para nos fazer rir. Cair na gargalhada,
mesmo depois do desabamento de um prédio que matou não sei quantos; do achado
de cadáveres desovados por traficantes de entorpecentes; de malucos que invadem
escolas e matam estudantes que não tem nada a ver com suas sociopatices
psicóticas. Com Millôr, foi a embora uma parte do pensamento contemporâneo que
sabia tornar mais suaves os problemas da arena política ou mesmo do nosso
comportamento no que ele tem de mais sublime e mais grotesco. Ou mais
inusitado, como nesta observação:
“Não
é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o derradeiro
recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar o castelo do
homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo atribulado, numa época
convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta só
o banheiro é um recanto livre, só essa dependência da casa e do mundo dá ao
homem um hausto de tranquilidade. É ali que ele sonha suas derradeiras
filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego. Outrora, em outras eras
do mundo, havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se
entregar à sua meditação e à sua prece”.
Vai
com Deus, Millôr. E fala lá em cima que aqui nós tentaremos recuperar a graça,
mesmo nestes dias acinzentados do mais longo de todos os nossos marços.