Roger Cohen
No Rio de Janeiro
DO HERALD TRIBUNE
Eu vim para o Brasil na década de oitenta, em uma época de dinheiro
esquisito. A inflação atingiu um pico de 6.821% em abril de 1990.
Atualmente o Brasil é um lugar de preços esquisitos. Uma garrafa de
vinho tinto chileno comum pode custar US$ 100 e um par de tênis de marca
US$ 350. Comparativamente, Paris e Nova York parecem ser lugares muito
baratos.
O dinheiro esquisito recebeu vários nomes – cruzeiro, cruzado, cruzado
novo, cruzeiro real – em busca de uma credibilidade elusiva. Mas o
Brasil tinha um único nome: instabilidade. A seguir veio a criação do
real em 1994, sólidas instituições democráticas, reforma monetária,
privatizações, aumento da produção de commodities, comércio com a China,
grandes descobertas de petróleo – e a pizza margarita a US$ 45.
Essa pizza da era do boom econômico brasileiro me deixa irritado. É
necessária certa arrogância para amassar e assar massa de pão
arredondada por tal preço – exatamente aquela arrogância que acabou no
Ocidente. Nós estamos vivendo a grande inversão global. As etiquetas de
preço gritam: Você virou história, baby!
Eu sem dúvida consigo ver as coisas dessa forma. Antigamente os
diretores do Citibank consideravam o Brasil um país fracassado. O que
vemos agora é uma história de virada. O capitalismo brasileiro tem se
saído melhor do que o capitalismo norte-americano recente e muito melhor
do que os bancos dos Estados Unidos. A desigualdade, que ainda é
acentuada, sofreu uma redução aqui no Brasil nos últimos anos. Dentre
todas as commodities brasileiras de rápido crescimento, a confiança é a
mais presente.
Mas desconstruamos essa Gucci de pizzas. Afinal de contas, ela vende.
Por detrás da massa fabulosamente cara, do tomate e da mozarela está à
espreita uma moeda brasileira supervalorizada. E por detrás disso há
taxas de juros suficientemente elevadas e uma nação suficientemente
estável para atrair corporações globais e fazer com que os super-ricos
do mundo invistam o seu dinheiro aqui. Por detrás dessa opção de
investimento estão as crises norte-americana e europeia que
desvalorizaram as principais moedas, em parte por meio de injeções
monetárias do Banco Central conhecidas como flexibilizações
quantitativas.
Em suma, essa é uma pizza prenunciadora. Existe mais confiança no
Brasil do que na Europa do euro comprometido ou do que nos Estados
Unidos da indústria financeira comprometida. O arrogante Brasil, com o
seu petróleo das plataformas marítimas e a sua Olimpíada que está por
vir, proporciona uma imagem especular de um Ocidente frágil. Você está
em busca da promessa da América? Venha para cá.
A agenda global em 2012 não tem nenhum foco que seja mais importante do
que encontrar um equilíbrio entre os extremos do otimismo do terceiro
mundo e a morosidade do mundo desenvolvido. As guerras iniciada após 11
de setembro de 2011 acabaram ou estão acabando. Elas não foram
inteiramente perdidas, mas também não foram vencidas.
O recente surto assassino do sargento Robert Bales – um militar dos
Estados Unidos estacionado no Afeganistão na sua quarta missão nessas
guerras, acossado por problemas financeiros e correndo o risco de perder
a sua casa – resumiu as frustrações com esses conflitos. Bales perdeu a
cabeça. Muitos perderam tudo. Após as guerras e os trilhões de dólares
por elas consumidos veio a tarefa árdua de lidar com a dívida e os
déficits, o índice elevado de desemprego, o crescimento anêmico e a
autoestima abalada.
Sair dessa situação é algo que só poderá ser feito por meio de um
esforço conjunto. Economias em desenvolvimento como a China e o Brasil
terão que experimentar uma queda de superávit para que os déficits
debilitantes do Ocidente sejam corrigidos.
O real supervalorizado, que pune as empresas que tentam exportar, não é
melhor para o Brasil no longo prazo do que um euro que passa por
operações de resgate seguidas é para a Europa. O Brasil, a China e todas
as economias emergentes não são beneficiados por um Estados Unidos e
uma Europa imersos em dúvidas e flagelados pelo desemprego da sua
juventude. O mundo está buscando uma rota sustentável para sair da crise
econômica de 2008. Subterfúgios, que tiveram um custo moral, impediram o
pior. Mas eles não criaram novas bases econômicas convincentes.
Quando Greg Smith, um executivo do Goldman Sachs que estava deixando a
instituição, disse recentemente em uma coluna publicada no "New York
Times", "Fico nauseado ao ver a maneira como as pessoas na firma falam
impiedosamente em arrancar o dinheiro dos clientes", o nojo que ele
sente pela sua companhia refletiu um mal-estar generalizado em relação à
forma como as grandes instituições financeiras norte-americanas, que
foram salvas com o dinheiro do contribuinte, saíram da crise de 2008 sem
terem feito nenhuma autocrítica séria.
A cultura que produziu aquele desastre não foi desmantelada; em alguns
casos ela não foi sequer questionada. Enquanto isso, indivíduos como o
sargento Bales seguiam para a guerra e milhões de norte-americanos eram
despejados das suas residências. Um resultado disso foi o movimento
"Occupy Wall Street". Outro foi a sensação de que um capitalismo
distorcido, caracterizado por uma redução da mobilidade social, não está
funcionando.
Nos próximos meses, em reuniões em Camp David (G-8), na Cidade do
México (G-20) e aqui no Rio de Janeiro (Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável), os líderes mundiais buscarão
novamente algo que possa ser feito. Não há soluções rápidas. Mas o foco
precisa concentrar-se no estímulo ao crescimento: conforme indica a
agonia da Grécia e da Espanha, gerenciar problemas financeiros sem
crescimento é algo que não funcionará.
Mas o crescimento apenas não é suficiente. O mundo está aprendendo que o
crescimento precisa ser mais igualitário e sustentável. E para que se
consiga isso será necessário que haja reforma fiscal, regulamentação
financeira global e melhor uso dos recursos. Um código tributário
norte-americano que permite que indivíduos muito ricos como Mitt Romney
paguem 13,9% de impostos sobre uma renda que foi de US$ 21,6 milhões em
2010 alimentou a frustração da classe média, que paga muito mais.
Justiça e igualdade de oportunidades são valores norte-americanos
essenciais; mas eles foram solapados. O resultado disso é um estado de
espírito nacional que fará com que a luta de Barack Obama pela reeleição
em novembro seja árdua, apesar de toda a palhaçada que temos
presenciado nas primárias republicanas.
Obama precisa modificar a forma como os norte-americanos encaram o
futuro. Obama é o Mister Competência, mas ele precisa transformar-se no
Mister Confiança. Isso exige crescimento. O Brasil, o único pais de
tamanho e diversidade similares na América, poderia ser um parceiro
importante nesse processo caso certas rivalidades petulantes e antigas
fossem deixadas de lado.
Talvez não se tenha prestado atenção suficiente à América Latina e à
sua transformação nos últimos 25 anos. Nós estamos presenciando, afinal
de contas, o início de outra mudança regional histórica conhecida como
Primavera Árabe. Existem alguns paralelos interessantes. Vale a pena
chamar atenção para eles porque a vitória no Egito – a criação no
decorrer da próxima geração de uma sociedade como a do Brasil, mais
aberta e responsável e que desfrute de um forte crescimento econômico – é
atualmente mais importante para o Ocidente do que o resultado preciso
da campanha militar no Afeganistão. A democracia árabe pode acabar com o
extremismo exatamente da mesma forma que a democracia latino-americana o
fez.
A junta militar argentina cedeu o poder em 1983. O governo militar
brasileiro caiu em 1985. O regime militar chileno perdeu um referendo em
1988 que resultou no seu fim. Todos esses regimes brutais foram
apoiados pelos Estados Unidos. Eles seriam supostamente bastiões de
resistência ao comunismo revolucionário – da mesma forma que os
ditadores da Tunísia ao Egito foram apoiados pelo Ocidente como sendo a
única suposta defesa contra o islamismo radical.
Dilma Rousseff, a presidente do Brasil, foi uma dessas esquerdistas.
Ela foi torturada pelas forças armadas e ficou presa de 1970 a 1973.
Agora, após estar há pouco mais de um ano na presidência, ela governa o
Brasil com um pragmatismo que tem combinado políticas que tranquilizam
as lideranças empresariais com programas que fizeram com que milhões de
brasileiros ingressassem na classe média. Eu gosto de pensar que
Rousseff, uma ex-guerrilheira, seja um exemplo daquilo que um ex-radical
da Irmandade Muçulmana poderá ser daqui a 20 anos.
O islamismo político está sendo redefinido para levar em consideração a
modernidade e as exigências dos muçulmanos por responsabilidade
governamental. Movimentos como a Irmandade Muçulmana no Egito ou o
Ennahda na Tunísia, adaptando-se às responsabilidades do poder, estão no
centro dessa mudança. A mudança poderá ser irregular, às vezes até
violenta, mas ela conduzirá à direção de uma maior abertura.
Formas de governo, sejam elas seculares ou religiosas, que reduzem
nações a feudos particulares, como é o caso da Síria de Bashar al-Assad,
estão condenadas. Assad poderá se manter no poder por algum tempo, mas
não há saída para ele, da mesma forma que não houve saída para as forças
armadas da América Latina depois que a cultura democrática se enraizou
na região. Acabar com essa tirania após o assassinato de mais de 7.000
sírios deveria ser uma tarefa prioritária na agenda global.
E igualmente prioritário é evitar uma guerra com o Irã. Eu não acredito
que Israel atacará o Irã, contanto que Obama continue demonstrando a
sua firme oposição a isso. A análise de custos e benefícios não tem como
justificar tal atitude; os israelenses não são loucos.
A esta altura o Ocidente conhece os custos das guerras – não apenas em
termos de vidas e riquezas, mas também no que diz respeito à deturpação
do debate nacional de forma a descartar decisões essenciais nas áreas de
educação, energia e infraestrutura. De acordo com as melhores
estimativas da inteligência ocidental o Irã ainda não dirigiu o seu
programa nuclear, que já dura décadas, para a fabricação da bomba
atômica, de forma que há tempo. As negociações estão sendo reiniciadas
entre as grandes potências e o Irã. A menos que sejam criativas, essas
negociações fracassarão.
O Irã deseja o reconhecimento do seu direito a enriquecer urânio. Esse
desejo só pode ser concedido caso o processo seja verificável e produza
urânio enriquecido a um teor de 5%, que é necessário para a geração de
eletricidade, sem superar esse nível. Portanto, voltando ao Brasil: é
preciso ressuscitar algo como a ideia apresentada pelo Brasil e pela
Turquia (mas originalmente concebida pelos Estados Unidos) de fornecer
urânio enriquecido a 20%, do qual o reator de isótopos medicinais de
Teerã necessita, em troca do compromisso do Irã de enviar parte do seu
urânio enriquecido para fora do país. Ao mesmo tempo, é necessário
ampliar qualquer diálogo com o Irã. Caso seja mantida em isolamento, a
questão nuclear iraniana será insolúvel. E ela também será insolúvel sem
as potências emergentes, como o Brasil e a Turquia, que são capazes de
atenuar a desconfiança psicótica existente entre o Irã e os Estados
Unidos.
E aquilo que se aplica à economia também se aplica ao Irã: um mundo
interconectado precisa trabalhar em conjunto de maneiras ainda não
imaginadas para encontrar soluções efetivas. Em 27 de julho, os Jogos
Olímpicos terão início em Londres. A capital britânica está nos últimos
estágios dos preparativos para essa festa global. Talvez o fato
socialmente mais significativo até o momento tenha ocorrido em uma ampla
avenida que vai do Hyde Park até o Museu Victoria and Albert.
A um custo de quase US$ 40 milhões, a Exhibition Road foi transformada
na principal mostra do embelezamento de Londres. Um desenho entrecruzado
em granito preto e branco vai de um lado a outro da avenida, ao lado de
uma fileira de postes altos e delgados de iluminação que parecem-se
mais com elevados refletores do que com postes de luz tradicional. O
efeito é onírico, especialmente quando percebe-se que não há calçadas.
Carros, bicicletas e pedestres passam por uma única superfície sem
barreiras. Somente canais de drenagem cobertos por ferro fundido negro e
uma faixa de pavimento áspero (para a orientação dos deficientes
visuais) separam a área de pedestres daquela destinada aos veículos.
Essa é uma nova forma de cenário conhecido no setor de design urbano
como "espaço compartilhado".
A ideia de "espaço compartilhado", criada Hans Monderman, um engenheiro
de trânsito holandês, revoluciona o pensamento tradicional sobre a
segurança de tráfego. Durante grande parte do século 20, achou-se que o
fluxo eficiente do trânsito dependia de uma separação total entre carros
e pedestres, complementada por sinais de trânsito, placas, barreiras e
pinturas no pavimento para manter as pessoas em segurança.
Monderman, que morreu em 2008, teve outras ideias. Ele desejava
aumentar a consciência e a responsabilidade coletivas acabando com todos
os sinais e separações no trânsito, e acreditava que a segurança
poderia ser de fato aumentada ao se fazer com que as pessoas que
trafegassem pelas ruas tivessem uma consciência intensa da presença dos
outros indivíduos. Às vezes ele testava as suas ideias – implementadas
em várias cidades holandesas, bem como em algumas cidades alemãs e
escandinavas – andando de costas em direção ao tráfego em uma área de
espaço compartilhado. A conclusão foi que as teorias dele funcionavam.
O espaço compartilhado não é uma má metáfora para o mundo atual, um
lugar no qual as velhas placas de trânsito têm pouca utilidade, onde a
separação não passa de ilusão, e a navegação bem sucedida depende da
intensa consciência de cada ator, desde Ipanema até Teerã e South
Kensington.
Eu estou tirando uma folga deste espaço durante alguns meses para
concluir um livro, uma memória de família que tem início na Lituânia,
vai à África do Sul e ao Reino Unido, e termina nos Estados Unidos e em
Israel. Eu mal posso esperar para reiniciar a conversa no próximo verão
do hemisfério norte.
Tradutor: UOL