quarta-feira, junho 27, 2012

A era e o poder do Twitter

Gian Danton

Segunda-feira, 2/1/2012

O Twitter é um fenômeno mundial de dimensões grandiosas. Ele mudou a forma das pessoas se relacionarem e fazerem política. E mudou a forma das empresas se relacionarem com os clientes. Reflexo disso são duas publicações recentes voltadas para o uso microblog como ferramenta de Marketing: O poder do twitter , de Joel Comm (Gente, 268 p.) e A era do twitter, de Shel Israel (Campus, 274 p.).

Embora tenham objetivos semelhantes, são dois livros diferentes. O poder do twitter é uma espécie de manual, que ensina desde como criar sua conta à estratégias para conseguir mais seguidores. A era do twitteré mais um livro de cases, com histórias de sucesso e fracasso de empresas no mundo virtual. A origem do microblog é bem explicada nesse último. O twitter surgiu numa empresa chamada Odeo, de propriedade de Ev Williams, um ex-funcionário do Google e criador do Blogger, e Biz Stone, criador de um dos primeiros sites para desenvolvimento de blogs. O objetivo da empresa era fazer para o áudio on-line o que o Google fez para o texto on-line: ser um mecanismo de busca para arquivos de áudio e vídeo.

Mas a empresa enfrentava um problema sério: a maioria dos funcionários trabalhava em sua própria casa. Ninguém sabia exatamente quem estava fazendo o que. Convocar uma reunião, então, era um inferno: era quase impossível encontrar as pessoas quando se precisava delas. Quem trouxe a solução foi Jack Dorsey, arquiteto de software da Odeo. Quando era criança, ele ficou fascinado com a maneira como os veículos de emergência eram despachados - a tecnologia que direciona polícia, bombeiros, motoristas de ambulância para os locais em que fossem mais necessários. Para isso, ele resolveu usar o SMS, tecnologia mais popular de envio de mensagens de celular. Ele cortou vinte caracteres do tamanho do texto, de forma que as mensagens pudessem identificar o emissor. Mas a grande diferença é que os SMS eram enviados não a uma pessoa, mas a todo um grupo: se uma funcionária da Odeo postava, todos os outros funcionários saberiam que ela estava almoçando, a caminho do escritório ou trabalhando em casa. Era um microblog: "a conversa ia de uma pessoa a outra com facilidade e rapidez. A conversa fluía como um rio e logo foi chamada de tweetstream (ou apenas "stream" ou "fluxo")", conta Shell Israel.

A empresa ia registrar o serviço como Stat.us, mas o domínio já tinha dono. Acabou virando TWTTR seguindo a moda de suprimir as vogais, iniciada pelo Flickr. Logo se transformaria no TWITTER. O serviço, que havia sido criado para uso apenas interno, foi se alastrando. Os funcionários não conseguiam resistir à tentação de compartilhar essa nova ferramenta com os amigos, e logo uma multidão estava no serviço.

Qualquer outra empresa demitiria os funcionários que compartilhassem um serviço que deveria ser apenas interno, mas a Odeo não viu problemas nisso e logo o Twitter seria o principal sucesso da empresa e o acesso era tão grande que provocava bugs no site. Em conseqüência, surgiu um ícone popular: a baleia de manutenção, criação da artista chinesa Yi Yung Lu.

E logo o twitter teria papel fundamental para as novas empresas, seja para o bem, seja para o mal. Aliás, os melhores capítulos de A era do twitter são aqueles dedicados a empresas que se foram vítimas do microblog. Exemplo disso é a história da Motrin Mons, um analgésico. Em uma de suas campanhas, eles fizeram um vídeo para internet em que se mostrava como os acessórios para carregar bebês poderiam causar dores no corpo, que seriam aliviadas pelo analgésico. Era um anúncio divertido, para o público jovem. Mas uma mãe blogueira, Jessica Gottlieb, ficou indignada e afirmou no twitter: "É cruel fazer brincadeiras com mães de primeira viagem". A partir daí, a indignação contra a empresa se espalhou com rapidez na rede. A hashtag #Motrin Moms entrou para o Trending Topic daquela semana. A campanha contra a empresa se alastrou por outras mídias e foi até para o Youtube, em que um vídeo satirizava o comercial da empresa, em que uma mulher com implantes de silicone dizia: "vou suportar a dor, porque é uma dor boa. É para o meu marido".

O livro traz também bons exemplos, de empresas que estão se saindo bem usando o Twitter, mas essas curiosamente parecem menos interessantes, e muitas vezes o autor acaba perdendo a mão ao contar mais a história do responsável pelo sucesso da empresa no twitter do que o sucesso em si.

O livro de Joel Comm, embora seja bastante objetivo, traz sacadas interessantes. Uma delas que o Twitter é um ótimo veículo para pedir ajuda. Ele cita o caso, também relatado por Shel Israel, do estudante de jornalismo norte-americano que foi detido enquanto fotografava manifestações contra o governo do Egito. Uma única palavra ("Preso") salvou-o da prisão. Uma rede internacional se uniu para pressionar por sua liberdade.

Um exemplo igualmente dramático é dado por Shel Israel. Em 20 de dezembro de 2008 a escritora Jean Ann Van Krevelem estava num avião pronto para decolar no aeroporto de Portland, Oregon, com seu marido e filhos. A região enfrentava uma nevasca, mas os passageiros foram orientados a ficar em seus lugares. Não havia água ou comida no avião. Duas horas e meia depois os passageiros foram liberados para desembarcarem. Dez minutos depois, os passageiros foram novamente direcionados para embarque. Poucos tiveram tempo de comer ou beber algo. Pensavam que já iam decolar, mas passaram mais duas horas e meia parados. Muitos passageiros precisavam tomar remédios que estavam nas bagagens despachadas, pois acreditavam que a viagem seria curta.

Conforme Jean tuitava, a notícia se espalhava pela rede. Logo as emissoras locais souberam do fato, correram para o local e, diante da pressão, a empresa permitiu que os passageiros desembarcassem. Quando a escritora desembarcou, todos os jornalistas queriam saber o que era o tal de Twitter.

Joel Comm explora a maneira como as empresas podem aproveitar essa característica a seu favor, oferecendo ajuda às pessoas. Um ponto os dois autores têm em comum: eles defendem que o twitter não deve ser usado para mensagens unidirecionais: "Todo o site age como um fórum gigantesco, no qual especialistas em toda sorte de assunto estão dispostos a oferecer seus conselhos a praticamente qualquer um que os solicite (...) Toda vez que você responde, contribuiu para a conversa de alguém. Isso faz com que você seja uma parte valiosa da comunidade", escreve Joel Comm.

Ao comentar sobre uma empresa que usa o twitter apenas para enviar mensagens unidimensionais para seus clientes, Israel escreve: "Acho que Sinkov e eu tratamos 'amigos próximos' de forma diferente. Eu geralmente pergunto como as famílias vão, o que está acontecendo na vida deles. Meus amigos e eu falamos sobre esportes, livros, filmes e o tempo. Às vezes fazemos brincadeiras uns com os outros. Outras vezes, somos um ombro amigo e oferecemos apoio".

Nesse sentido, os dois livros defendem que as empresas devem ter no Twitter abordagens pessoais e coloquiais, preferencialmente de forma que os seguidores saibam com quem está falando. E, principalmente, que participem da conversa, e não usem os outros apenas como platéia.

Muitos políticos que entraram no twitter durante a última eleição deveriam ter lido ambos os livros.


Gian Danton
Macapá, 2/1/2012

1932: uma página de diário

Por Elvia Bezerra



IMS | 26.06.2012, 14:08

Não terá sido apenas pela reconhecida devoção a Os sertões que o jornalista Olimpio de Souza Andrade se ocupou da transcrição integral, anotada, da caderneta em que Euclides da Cunha registrou o cotidiano dos 18 dias em que esteve à frente da batalha de Canudos.

Esse material, somado à abundante documentação relativa à obra euclidiana e a outros itens, como as cartas de Drummond, integra o acervo de Olimpio, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2007.

Curiosamente, como se lê no título, o diário do estudante reportava-se também a uma revolução. Aos 18 anos de idade, morador da cidadezinha paulista de Casa Branca, Olimpio anotou o que vivenciou durante o conflito que entraria para a história como a Guerra Paulista ou Revolução Constitucionalista de 1932.

No período de 9 de julho a 4 de outubro daquele ano, período de duração da guerra, Souza Andrade registrou a movimentação no povoado que seu bisavô, o coronel Antonio Marçal Nogueira de Barros, reunira a outros, vizinhos, para em 1870 fundar a cidade de São José do Rio Pardo, onde, como já se disse, nasceria o neto.

Como não podia deixar de ser, o diário revela o entusiasmo com que o jovem vivia aquele momento em que São Paulo repudiava a continuidade da ditadura Vargas e exigia uma constituinte com base nos princípios da democracia liberal. De nada adiantou a nomeação do interventor civil e paulista Pedro de Toledo para o Estado: sem perspectivas de eleições e sem o apoio do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, a que se ligara, São Paulo, isolado, contou apenas com a sua própria milícia estadual e com intensa mobilização popular para enfrentar as forças federais na revolução que terminou com a rendição dos revoltosos e que no próximo 9 de julho completa 80 anos.

A página do caderno de Olimpio que se reproduz aqui traduz um flagrante na estação de trem de Casa Branca, onde cada jovem dava sua cota de heroísmo ao embarcar com destino à luta.

Sob o título Caderneta de campo, o livro, considerado a gênese de Os sertões, mereceu copiosas notas de Souza Andrade, o organizador. Ao publicá-lo, em 1975, ele enviou um exemplar a Carlos Drummond de Andrade, que, em carta de agradecimento, não poupou elogios: “Essa Caderneta, então, põe a gente emocionada, e a emoção é dupla: revive-se o dia a dia do escritor/repórter e sente-se a amorosa vigília do seu devoto estudioso a decifrar no microfilme, sem pressa e sem pausa, a miúda caligrafia dos apontamentos originais”.

Muitos anos antes de se dedicar aos estudos euclidianos, Olimpio de Souza Andrade, nascido na fazenda Fartura, em São José do Rio Pardo (SP), no ano de 1914, já demonstrara interesse por diário. Ele mesmo escrevera o seu, felizmente em letra não tão miúda quanto a de Euclides, em sete cadernos escolares, sob o título “Uma praça de guerra”.

Esta é a transcrição da página:

Era meio-dia! Grande massa já se estacionava defronte à Casa Renascença, era dali que sairiam os valentes moços casa-branquenses em busca de um fuzil para velar do pedaço de terra paulista que lhe fosse confiado… A banda de música também lá estava.

Romperam a marcha… e subiram perto de quarenta moços, sob o comando de Yolando Basilone, depois tenente que muito fez pela causa no setor sul.

Na estação a azáfama era enorme! Quem chegasse pouco depois do povo que acompanhava os voluntários não mais conseguiria penetrar na gare da Mogiana. Todos falavam, todos exaltavam os méritos daqueles bravos rapazes, mas… nem todos poderiam seguir, embora o desejo e a obrigação os impelissem!

Chegara o trem de Ribeirão Preto que seguia para Campinas! Este trem é que levaria os voluntários; aí então deu-se lugar às despedidas… Na hora que abracei o Luiz ele me disse: “Olímpio, até por lá se for necessário!” – “Sim, até por lá” – respondi-lhe! O trem apitou, suas rodas rangeram, começaram rodar, pegou mais velocidade e sumiu-se na curva!… Todos com ar meio triste, meio alegre; desceram vendo como quem quer ver mas não vê as mãos abanando e rostos risonhos dos rapazes que se foram…

Na mesma São José do Rio Pardo onde nasceu Olimpio de Souza Andrade chegaria, em 1896, o engenheiro militar Euclides da Cunha, com a missão de fiscalizar a ponte metálica sobre o rio que a batiza. Desviado pelo O Estado de S. Paulo, em 1897, para fazer a cobertura da guerra em que o Exército brasileiro resolveu avançar contra aquele “imenso lar sem teto”, como chamaria Euclides ao povoado baiano de Canudos, ele voltaria a São José no ano seguinte para retomar a fiscalização da ponte metálica, que desabara.

Mas a guerra mudara a sua vida e se convertia em tema para engrandecer a literatura brasileira: na cabana às margens do Rio Pardo ou à noite, em casa, ele escreveu Os sertões, lançado em 1902. Deixou plantada na cidade uma tradição que seria retomada por Olimpio de Souza Andrade, cujo inteletto damore, como chamou Drummond à sua inteligência amorosamente aplicada aos estudos euclidianos, muito contribuiria para enriquecer a leitura do clássico de Euclides da Cunha.

* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles


segunda-feira, junho 25, 2012

JORNALISMO CULTURAL

Reflexão sobre sua importância e seus desafios

Jornal de Debates

Por J. S. Faro em 12/06/2012 na edição 698

Reproduzido do Suplemento Literário de Minas Gerais, edição especial “Reflexões sobre o jornalismo cultural”, Belo Horizonte, 2012; intertítulos do OI

O Jornalismo Cultural é um gênero que ocupa um papel importante na imprensa da atualidade. [Jornalismo Cultural é a produção noticiosa/analítica de eventos de natureza artística e/ou editorial. É um conceito genérico e elástico como é também a matéria-prima de suas coberturas, mas isso se deve menos à sua inconsistência do que à natureza da própria cultura.] Basta que o interessado observe o que acontece nas boas bancas de jornal para que se dê conta da variedade de títulos de publicações voltadas para a crítica das artes e da atividade cultural em geral – revistas, cadernos, tablóides, suplementos de jornais – numa clara demonstração de que sua importância não é apenas editorial, mas também econômica já que essa presença vem associada a muitos recursos publicitários destinados à sustentação financeira desses veículos. Além disso, nos anos recentes uma parte significativa das matérias relacionadas à cultura também está presente nos meios digitais – portais especializados, sites noticiosos, blogs e redes sociais. É possível que a imprensa esteja em crise porque vários órgãos desapareceram e outros foram enxugados com a perda de profissionais e a redução de suas coberturas, mas isso não tem sido suficiente para acanhar o dinamismo do Jornalismo Cultural.

Apesar disso, no entanto, o gênero enfrenta duas dificuldades. A primeira delas é interna, isto é, são os próprios profissionais da imprensa que têm dificuldade em definir o Jornalismo Cultural na sua concepção e natureza, fato que turva a imagem que seus autores fazem de si mesmos e do seu trabalho. Não é difícil encontrar veículos onde as matérias culturais são vistas como secundárias e meramente acessórias das demais editorias – sem que isso encontre algum tipo de resistência entre os profissionais, uma espécie de baixa-estima que aprofunda o desentendimento sobre o assunto.

Associa-se a essa primeira dificuldade uma outra: os estudos acadêmicos sobre o assunto – cursos, artigos, pesquisas universitárias, dissertações de mestrado ou teses de doutorado – além de poucos, também se debatem na procura de definições rigorosas que o tema exige para que possa ser entedido em toda a sua dimensão e importância.

Exemplo disso é a frequência como o Jornalismo Cultural é visto nesses estudos como um território de exercício do poder econômico de seus promotores e de verdadeiros manipuladores da opinião dos críticos. Um demonstração dessa perspectiva é o artigo do professor Quartim de Moraes publicado em 2010 no Observatório da Imprensa a respeito das engrenagens que criam os best-sellers comentados na imprensa brasileira (leia aqui). A julgar pelo que ele diz, toda a autonomia do crítico fica comprometida pelos interesses em jogo na simples resenha de uma obra literária.

Páginas digitais

Essas duas desqualificações que o Jornalismo Cultural sofre acabam reduzindo-o a um exercício mercantilizado e de pouca relevância – ou pela racionalidade editorial dos veículos (que não veem nele densidade jornalística) – ou pela racionalidade financeira dos editores (que veem nele um instrumento de merchandising de promotores de eventos culturais). O resultado é o pior possível porque ergue-se em torno do gênero um conjunto de avaliações que o segregam no quadro geral da imprensa, discriminando-o. Nessa visão o Jornalismo Cultural é algo secundário e meramente acessório na imprensa em geral.

A segunda dificuldade é externa e é bastante complexa porque ela remete às mudanças de ordem estrutural que a sociedade vem experimentando nas últimas décadas e que refletem alterações profundas nas referências culturais e de padrões de gosto do público. Também aqui o problema se desdobra. De um lado, observa-se já desde os primórdios do desenvolvimento dos meios eletrônicos de comunicação uma redução e uma mudança dos hábitos de leitura em razão dos estímulos dos veículos que primam pela sonoridade e pela natureza imagética de suas mensagens; são os veículos de comunicação eletrônica, hoje dominados pela tecnologia digital. O principal estudioso dessa tendência – o professor canadense Marshall McLuhan – afirmou em diversas de suas obras que essa mudança no processo de comunicação consagrada pelo Rádio, pelo Cinema e pela Televisão representava uma nova etapa na história da cultura humana – a etapa da retribalização da audiência (pela analogia que McLuhan fazia com os períodos da história em que a aquisição do conhecimento primava pela oralidade, à semelhança de uma tribo). [Marshall McLuhan é um autor obrigatório nos estudos contemporâneos de Comunicação e suas reflexões tiveram grande impacto nas teorias da área desde o final dos anos 60. A obra sugerida aqui éOs meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix, s/d.]

Esse novo momento trouxe na contrapartida da variedade de possibilidades que permitia uma espécie de dispersão dos processos de cognição – já que não era mais a cultura alfabética o núcleo essencial da atenção do receptor. Com isso, todas as práticas relacionadas ao texto escrito sofreram o impacto dos meios eletrônicos – fato que concorreu fortemente para o declínio da atividade reflexiva individualizada que o livros sempre favoreceram. Essas mudanças vieram associadas a diversas outras, mas a mais importante delas parece ser, como dissemos, uma redução dos hábitos de leitura como decorrência de uma alteração que o livro passou a ter no cotidiano das pessoas.

Ora, se isso é verdade – embora a tese de McLuhan sempre tenha permanecido no terreno da polêmica que as construções teóricas provocam –, a crítica cultural talvez seja um dos primeiros e dos mais atingidos setores a sofrer suas consequências: foi a matéria-prima de sua atividade – a Literatura ou a produção do texto – que reduziu sua presença no cenário das práticas socioculturais. Não é difícil imaginar o impacto negativo que isso teve sobre as práticas jornalísticas – de resto, todas elas também afetadas pelo processo da retribalização.

De outro lado, mas ainda no terreno das mudanças estruturais apontadas acima, a história recente parece demonstrar que as tecnologias digitais tornaram mais agudas as tendências à “liquefação” do texto presentes na expansão dos meios eletrônicos. Em diversas situações, aquilo que McLuhan apontou como a aldeia global, cuja existência é favorecida pela transmissão de dados através de satélites, adquiriu nos anos 80 e 90 o perfil de uma explosão das comunicações, uma verdadeira revolução informacional que colocou em xeque todos os paradigmas da cultura clássica. É difícil apontar um único setor da atividade intelectual (sem que seja preciso indicar isso também no campo da economia e da ordem social) que não tenha sido impactado pela internet, pela formação das redes sociais, pela interatividade permitida nos veículos etc. O resultado disso, também aqui, parece ter desfavorecido o Jornalismo em geral, mas em particular o Jornalismo Cultural que sempre teve na hierarquia da centralidade autoral sua fonte de credibilidade e de prestígio junto ao público.

É frequente entre os próprios jornalistas da área da cultura a queixa de que o espaço da reflexão especializada sobre a Literatura, por exemplo, tem sido invadido pela profusão de páginas virtuais, quando isso não acontece diretamente pela interatividade que inúmeros sites e portais permitem aos que os acessam. São manifestações diversas, que repercutem a polêmica de um artigo ou de uma matéria, invariavelmente postadas por outros autores, verdadeiros “penetras” num terreno tão exclusivo quanto é o da crítica cultural. [Vale a pena ler, a esse respeito, a matéria publicada pelo suplemento cultural do jornal Valor Econômico– Eu&Fim de Semana– intitulada “A crítica dos comuns”, assinada por Diego Viana. Trata-se de um precioso inventário sobre o desconforto que esse “descontrole” midiático provoca entre os próprios críticos – os acadêmicos e os jornalistas.] Ora, parece vir desse novo sistema um retraimento geral das fontes que sempre alimentaram o circuito de legitimação do jornalista junto à sua audiência, mas isso vem adquirindo uma tal intensidade que, dialeticamente, o reverso também passa a ser parte integrante do problema: o retraimento do público em relação às referências da área Cultural. Ou seja, são os usuários da rede passam a desconfiar do conteúdo que eles próprios ajudam a acumular nas páginas digitais. [Veja-se, por exemplo o que acontece com o fenômeno da Wikipedia, cuja intenção é ser uma enciclopédia que reúne todo o conhecimento humano já produzido a respeito de tudo. Como, para isso, é preciso contar com a colaboração dos próprios usuários, que postaminformações não autorizadas, isto é, sem a necessária credibilidade das fontes de consulta, cria-se em torno dessa maravilhosa ideia uma sistemática desconfiança na veracidade das informações que estão disponíveis. Esse processo – que talvez ainda reflita o caráter ainda incipiente da interatividade na rede – parece atingir – ou esbarrar – em todo o texto disponível na internet.]

Espaço de disputa

Esses dois fatos, que se conectam de forma simultânea e intermitente – perante o público, a crise da crítica (interna) se desdobra na crise de mediação do crítico (externa) – parecem indicar uma depressão nas práticas do Jornalismo Cultural que respondem pela busca de uma identidade mais consistente do gênero, alguma âncora epistêmica e sociológica que não o deixe ao sabor das idiossincrasias do mercado ou da técnica, nem mesmo ao sabor das pulsões do público na era de uma sociabilidade que põe o foco de suas virtudes não exatamente sobre o refinamento intelectual dos consumidores, mas no seu embrutecimento de gosto e estilo. Quer dizer, não é tanto a qualidade do que é publicado sobre a práticas culturais de qualquer espécie que importa, mas essa voracidade de consumo que tem o poder de mediocrizar tudo o que ela toca e que desperta em todos os agentes envolvidos pelo Jornalismo Cultural um forte ceticismo sobre o que ele é capaz de produzir.

Nessa linha de interpretação, a primeira variável que surge no emaranhado de problemas descritos até aqui, é a que aponta o Jornalismo Cultural como um gênero híbrido para cuja construção na confecção das matérias de que se ocupa concorrem outros atores sociais, dois deles de importância capital se quisermos entender em profundidade quais são os seus desafios: os intelectuais e os movimentos da sociedade civil. Não há crítica na órbita da cultura que não se faça de alguma forma na perpendicularidade entre o jornalista e esses dois co-protagonistas do cenário do Jornalismo Cultural.

Os intelectuais – acadêmicos ou não – têm no gênero a abertura para a publicização e divulgação dos temas que os ocupam – sejam eles os temas de natureza estético-expressiva ou os de natureza ético-política, os mesmos que formam a matéria-prima das pautas do Jornalismo Cultural –, fato que o transforma em espaço de forte presença na sociedade, de tal forma que a própria prática jornalística com as questões culturais transcende em significado os limites em que é desenvolvida. Uma análise qualificada e de forte sensibilidade conceitual sobre uma obra, por exemplo, pode perfeitamente acabar pondo em discussão questões que se situam além da crítica propriamente dita já que pode contribuir para a formulação de pontos de vista de amplitude ontológica e filosófica bem mais amplos que a estrita referência literária feita na matéria. [Sobre os conceitos apontados aqui – estético-expressivo e ético-político – sugiro a leitura do artigo de minha autoria – “Nem tudo que reluz é ouro: contribuição para uma reflexão teórica sobre o Jornalismo Cultural” – publicado na revista Comunicação & Sociedade, ano 28, n. 46, São Bernardo do Campo: Metodista, 2o. semestre de 2006. O texto também está disponível no Fórum sobre Jornalismo Cultural existente na minha página pessoal: http://www.jsfaro.net]

Sob esse aspecto, o Jornalismo Cultural não pode ser visto de forma dissociada dessa circunstância que o coloca como integrante de um processo social mais amplo; ele é, na verdade, um construção discursiva – sempre que a perspectiva mercadológica do veículo não se imponha sobre a primazia da produção cultural – que guarda estreita relação com o processo de gestação e de discussão das ideias, das correntes de pensamento, da estética, das normatizações da Política e do Direito, do campo das ciências físicas etc. É nesse território que ele encontra o espaço de sua legitimação. Imaginar que ele possa perdê-lo significa admitir que todo o conjunto de produções dessas áreas gira em torno de um vazio social intransponível, o que a própria história mostra ser improvável. [O exemplo mais concreto dessa amplitude que o Jornalismo Cultural tem no mundo das ideias e da organização dos intelectuais é o papel aglutinador que diversos veículos do gênero tiveram historicamente na imprensa brasileira. É o caso do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, ou de revistas como Clima, Diretrizes, Anhembi, manifestações paulistas da crítica cultural que acabaram reunindo em torno de seu projeto gerações de profissionais da imprensa e acadêmicos. Em Minas Gerais, o jornal Binômio, apontado como um dos principais representantes da imprensa alternativa na imprensa brasileira dos anos 50 e 60, também desempenhou esse mesmo papel.]

Ao lado disso, os movimentos sociais. Há tempos que os estudos de Comunicação deixaram de privilegiar questões meramente informacionais e quantitativas, como se a equação emissor-receptor se desse no âmbito de um sistema de inputs e outputs configurado em termos físicos. Essa foi uma noção que durante muito tempo sustentou a análise dos processos midiáticos. Não foi senão em meados dos anos 70 e início dos anos 80 que essa visão se alargou na direção de outras dimensões da Comunicação – a econômica, a política, a ideológica, a cultural – de tal forma que o sistema todo passou a ser visto como um complexo construtor de sentidos, muito longe de se esgotar na visão funcionalista que os primeiros teóricos da área sustentaram. Essa maior agrangência de perspectiva foi reponsável pela incorporação às práticas comunicacionais dos movimentos sociais, já que a própria Comunicação passou a ser vista como um espaço de disputa de poder – o poder simbólico e ideológico que as mensagens e os próprios veículos têm na sociedade.

Instrumento valioso

No caso brasileiro, essa nova orientação teórica dos estudos de Comunicação, mais crítica por assim dizer, foi contemporânea da época da ditadura militar (1964-1985), fato que coincidu com as restrições autoritárias que os meios de informação sofriam. Pois foi justamente nesse período que a presença da crítica cultural junto às demandas dos movimentos sociais se ampliou, o que deu a ela um enraizamento muito consistente na sociedade brasileira. Vale a pena relembrar, neste caso, a importância que o Jornalismo Cultural teve na crítica teatral, na crítica cinematográfica, na musical e também na literária: as avaliações que eram feitas na imprensa em geral sobre as manifestações artísticas nesses setores em diversas ocasiões adquiriam o perfil de um embate entre tendências estéticas e conceituais democráticas e as restrições do Estado autoritário.

Esse desdobramento que o Jornalismo Cultural tem – não apenas circunstancialmente, como se pode pensar nos exemplos recentes da história da imprensa brasileira, mas em relação a questões sociais e políticas de forte densidade universal – precisa ser resgatado sistematicamente para que ele encontre na sua própria herança e em suas próprias características a essência de sua natureza. É verdade que boa parte dos veículos que se destinam à crítica da cultura fazem, no fundo, matérias destinadas ao mero entretenimento e muitos deles são apenas instrumentos de interesses mercadológicos da dinâmica da sociedade de consumo, mas isso não anula o fato de que o gênero transcende, pela importância e pelos desafios que procuramos mostrar neste artigo, as injunções e inconveniências momentâneas. Uma sociedade complexa e diversificada como é a que a modernidade constrói tem no Jornalismo Cultural um instrumento valioso para emancipação de seus membros.

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Sugestões de leitura, além das indicadas no próprio artigo

(pela ordem alfabética do sobrenome dos autores):

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.

CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973.

COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. Escritores jornalistas no Brasil. Companhia das Letras, 2005.

IANNI, Octávio. O intelectual e a indústria da cultura. Revista Comunicações e Artes, ano II, n. 17. São Paulo: ECA/USP, 1986.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.

LINS, Osman. Guerra sem testemunhas. São Paulo: Ática, 1974.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1977.

PEREIRA LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas. Barueri (SP): Editora Manole, 2004.

PIZA, Daniel. Jornalismo cultural. São Paulo: Editora Contexto, 2003.

RESENDE, Fernando. O jornal e o jornalista: atores sociais no espaço público contemporâneo. Novos olhares, ano II, n. 3. São Paulo: ECA/USP, 1999.

RIVERA, Jorge. El periodismo cultural. Buenos Aires: Paidós, 2003.

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Humanitas, 2004.

WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

***

[José Salvador Faro é professor dos cursos de jornalismo da Universidade Metodista e da PUC, ambas de São Paulo, docente do programa de pós-graduação em Comunicação da Umesp e consultor do CNPq, da Capes e da Fapesp. É autor do livro Revista Realidade, 1966-1968. Tempo da Reportagem na Imprensa Brasileira (Porto Alegre: AGE, 1999); www.jsfaro.net

A vida que teremos na web

E-Notícias

TEMPOS MODERNOS

Por Sergio da Motta e Albuquerque em 19/06/2012 na edição 699

Net Smart: How to Thrive Online, de Howard Rheingold, US$ 16,20 (Amazon Books)

Tiago Dória escreve sobre tecnologia e seus impactos sociais para o Último Segundo, do portal iG. E o faz com muita competência e capacidade crítica. Ele publicou na terça-feira (12/06) um artigo de extrema importância no qual disseca o livro Net Smart: How to Thrive Online, do pesquisador, crítico e professor Howard Rheingold, que estuda as “comunidades virtuais” há décadas. Toda a argumentação do autor gira em torno da nova vida que teremos na web, e as adaptações necessárias para uma boa vida em rede.

A vida na web pode ser muito mais difícil do que se pensa. Bem maior do que nosso poder de subestimar o que já damos por conhecido, mas na realidade não foi ainda esclarecido totalmente. Um ambiente povoado por armadilhas, spams, tentativas de apropriação de dados pessoais (phishing), manejo de dados irresponsáveis e venais por parte de plataformas da rede, intimidações online (cyberbulling) limitação de escolhas pessoais... Viver na web é mais perigoso do que se imagina, caro leitor – e acredito que você já aprendeu por si mesmo essa desagradável realidade.

Vivemos em rede, mas pouco sabemos sobre seu funcionamento. Viver em rede não é como existir numa sociedade verticalmente hierarquizada, como já demonstrou Manuel Castells (A Galáxia da Internet, Zahar, 2003). As redes têm “considerável dificuldade em coordenar funções, em concentrar recursos em metas específicas e em realizar uma dada tarefa dependendo do tamanho e complexidade da rede”.

O que é um algoritmo, afinal?

Dória cita Rheingold, que em seu livro traz os exemplos do navegador Internet Explorer e do Facebook:

“De mesmo modo, Rheingold acaba contribuindo para o coro dos que acreditam que, atualmente, o Facebook é uma espécie de Internet Explorer, algo que milhares de pessoas usam, mas que faz um mal para o desenvolvimento da web. A esta altura do campeonato, criticar a plataforma de rede social é meio como chutar gato morto, mas, mesmo assim, o ponto de vista é pertinente.

Rheingold mostra que, ao lançar o botão de ‘curtir’, o Facebook reconheceu a importância da curadoria. O ato de criar um perfil é um exercício de desenvolvimento de identidade. No entanto, a plataforma de rede social deseduca. Diferente da ação de navegar aleatoriamente pela internet e do Twitter, em que você desenvolve a sua própria habilidade de filtrar informações, no Facebook tudo vem pronto e mastigado. Um algoritmo define o que é relevante.”

Quem quer entregar seus gostos pessoais, suas preferências e outros dados a um algoritmo? E o que é um algoritmo, afinal? De forma simplificada, são instruções lógicas em sequência, e que não permitem interpretações ambíguas, destinadas a obter um determinado resultado. O “algoritmo” do Facebook, então, é o conjunto de todas as regras codificadas em linguagem de programação que fazem que a rede tenha obtenha determinados resultados. E a maioria dos usuários não conhece nem um nem outro: não sabem como o Facebook faz o que faz, ou por que.

Milhões de solitários

Rheingold acredita que se você não sabe exatamente como funciona exatamente uma determinada tecnologia, é bem provável que você se torne vítima dela. Concordo com isso. Pode ser paranoia, mas quantas ações judiciais a rede social responde por administrar precariamente os dados dos usuários? Por manipulá-los? Por tomar posse deles e entregá-los a anunciantes? Tiago Dória comenta que, a esta altura das coisas, criticar o Facebook “é lugar-comum, mas necessário”. O fiasco no lançamento público das ações é só um reflexo das expectativas exageradas do mercado e da credulidade ingênua da maioria dos usuários, que se acostumaram a ceder seus dados sem nada em troca. O professor Rheingold, um homem marcado pela contracultura, acredita que deveria ser postado pelas mídias sociais um aviso que tornasse o internauta consciente de que está a fornecer todos aqueles dados de graça cada vez que estivéssemos prestes a entregar nossas intimidades a uma rede.

Apesar de todo o seu desenvolvimento, e do aumento do nível de segurança no ambiente da rede social de Zuckerberg, ela ainda representa perigo para todos os que não conhecem bem suas matreirices e caminhos tortuosos. Certeiramente, ele avisa que redes como a de Zuckerberg “deseducam”. Pensam por nós mesmos, reduzindo-nos a meros aparvalhados peões envolvidos em um jogo que não compreendemos e por isso saímos sempre perdedores. Ponto para o professor. Há perigo na rede, e este é o maior deles: retirar do usuário seu poder de decisão, sua capacidade de escolha, assimilação e aprendizado. O segundo maior dano provocado pela navegação inconsciente é a alienação e a falsa sensação de companhia e amizade que o Facebook e as mídias sociais simulam.

Dória reconhece a paradoxal alienação da vida digital na web quando cita a autora e pesquisadora Sherry Turkle, do MIT, que avisa: “Usar uma rede é como andar numa avenida de uma grande metrópole. Estamos rodeados de pessoas, mas, mesmo assim, sozinhos.” A alienação urbana é o equivalente espacial ao alheamento na web. Todo o progresso trazido pela sociedade em rede é baseado na desconstrução da vida pública fundamentada nos encontros face a face. Estamos juntos na rede, mas nunca antes tantas pessoas estiveram tão sós ao mesmo tempo: somos milhões de solitários a acreditar que temos “um milhão de amigos”. Multidões na web estão aparentemente juntas, mas quantas pessoas que você tem como amigas na web estão ao seu alcance em sua vida social rotineira? Quantas estão ao alcance de uma chamada telefônica, ou um convite para sair?

Decifrar e entender

Continuando com o raciocínio de Rheingold, ele acredita que a web ainda não desenvolveu todas as suas possibilidades e que nós devemos adquirir novas habilidades para extrair dela seu potencial máximo: atenção, colaboração, participação, inteligência de rede (ou coletiva) e capacidade para detectar o que não é relevante. Em destaque fica a inteligência de rede, pois diz respeito as nossas relações sociais na web e fora dela. Criamos frágeis “amizades” na web, que não têm paralelo com as verdadeiras amizades concretas da vida real. O professor explica que a sociedade não é mais estruturada por grupos de pessoas, mas por conexões em rede. “Não é mais o local físico que cria a identidade das pessoas, mas as redes”, diz Rheingold. E o que importa é tomarmos conhecimento de nossas posições dentro dela. Absorto e envolvido por seu objeto de estudos, o autor substituiu a vida real pela existência frágil e virtual em rede. Não concordo com ele. Fico com meus amigos reais. Poucos, mas essenciais.

Ele traz a analogia da migração do campo para a cidade, no início da Revolução Industrial, para provar seu ponto de vista: temos que aprender mais para nos prevenirmos das “armadilhas e distrações” desta nova vida em rede, do mesmo modo que o homem do campo teve que se adaptar à nova realidade da vida urbana no século 19. Fica claro neste ponto que o autor acredita que a sociedade deve moldar-se à rede. Não temos que acomodar na web as nossas necessidades e nossas vidas, mas, ao contrário, precisamos nos ajustar para a inexorável e ubíqua presença da web, prega o autor. É fato consumado e não temos nada a fazer a respeito. Precisamos nos adequar à vida em rede, acredita o autor.

Não sei se concordo com sua ideologia. Discordo de seu tom determinista, embora aparentemente vivamos num universo determinista, onde tudo o que acontece parece condicionado pelo que aconteceu antes. A argumentação do autor, neste ponto, tem a característica de uma matriz de pensamento de tendência absoluta, que não permite contestações e reduz todos os que discordam dela ao silêncio. Se realmente existe uma necessidade de ajuste, ele deverá ser feito no sentido de adaptar a web às nossas necessidades, e não o contrário. Não estou a negar a necessidade de se adquirir maior controle e conhecimento sobre as ferramentas que utilizamos na internet. Justo ao contrário: precisamos decifrá-las e entendê-las para não cairmos vítimas incautas das armadilhas da web. Mas a vida real vem primeiro. Sempre.

Nada pode conter o que não é esperado

A virtual é secundária e ilusória, mas cada vez mais e mais presente em nossas vidas. Cada dia que passa dedicamos mais e mais tempo à internet. Por isso o manual da “malandragem” na web do professor Rheingold é importante. Porque, como dizia Moreira da Silva, o mais famoso malandro carioca, “malandro que é malandro não é malandro”. Em outras palavras, uma boa dose de esperteza consciente e benigna é necessária e fundamental. Na web e na vida. Aliás, é isto o que quer dizer o título do livro de Rheilgold: “esperteza”, ou “malandragem de rede”. Seu equivalente das ruas e da vida é street smart – esperteza ou, como eu prefiro, malandragem de rua.

Reconheço que estou a colocar-me numa posição romântica e meio antiquada, para muitos, mas tenho um sonho. Um simples sonho: retomar nossas vidas públicas de conversa nas calçadas, nos bares das cidades, através da reapropriação de tudo aquilo que nos foi tomado à força pelos especialistas. Da web e de outras áreas em geral. Basta de especialistas. Basta de seus tons didáticos a ditar rumos em nossas vidas. Quero uma vida onde homens e mulheres saibam tomar conta de suas vidas sem medo, ou amparos espertalhões e oportunistas, como a praga da “literatura” de autoajuda, que nos deixa a todos como idiotas infantilizados.

Sonho com a volta da vida pública, das redes sociais reais dos encontros e reencontros pessoais. Com a força do acaso a determinar um futuro incerto, sem que sejamos possuídos pelo medo de algo inesperado acontecer. Porque acontece sempre. Nada pode conter o que não é esperado. A web não vai dirigir nossas vidas. Nós é que estamos a organizá-las através da web. A diferença é sutil, mas importantíssima. A web não tem o poder de deter a força do acaso e o inesperado não se submete às forças insuperáveis que trazem às nossas vidas tudo aquilo que não pode ser previsto, planejado ou desejado.

Adaptar a web às nossas necessidades

O acaso, o inesperado e as surpresas que a vida cotidiana nos traz conduzem nossas vidas. Neles residem nossas maiores alegrias e também nossas maiores dores e decepções. É um sonho da espécie humana ansiar por um mundo previsível, que a resguarde e previna das agruras da vida, mas infelizmente isto é apenas um devaneio: a web não vai nos salvar do que quer que nos espere no futuro. Que ignoramos completamente. Mas as megaplataformas da web querem que pensemos diferente. Querem invadir e apropriar-se de nossas vidas através de artimanhas. Nem toda conversa ou comunicação na web é partilha. As companhias de comunicação conseguiram fazer o público acreditar que trocar palavras em meio digital é a coisa mais prazerosa e necessária que há. Nada pode estar mais longe da verdade.

Quando estamos online, nossos comportamentos mudam. Tornamo-nos ousados, imprevisíveis e muitas vezes agressivos. Dizemos coisas que jamais seríamos capazes de expressar num encontro pessoal. Este é o mais danoso efeito na vida social da ingenuidade e da falta de cautela na web: ela nos dá uma falsa e covarde sensação de segurança para expressarmos os maiores absurdos sem que percebamos. Para fazermos o que não deveríamos, mas fazemos assim mesmo. Só porque podemos fazê-lo. No fim das contas, não estamos frente a frente. A mídia junta e separa: estamos fisicamente longe uns dos outros e isso modifica nosso comportamento: no campo das relações entre as pessoas pode haver facilitação para que seja dito o que nunca deveria ser, e feito o mal que nunca deveria ocorrer: invasões de privacidade, pornografia infantil, roubo de dados, desinformação, invasão de e-mail de terceiros, vírus e outras pragas que compõem a ecologia da web. Por isso tudo a esperteza esclarecida online é extremamente necessária. Ela significa conhecimento do que se passa ao redor, na web, e como funcionam as coisas dentro dela também.

A argumentação do professor em seu livro é extremamente relevante e eu só discordo dela em um ponto: não acredito que a sociedade humana deva adaptar-se à web. Creio que temos que pô-la a nosso serviço e evitarmos sempre que possível entregar a ela todas as nossas habilidades, interesses e particularidades que nos distinguem como seres humanos únicos. Não temos que nos adaptar a ela, mas fazê-la mais e mais adaptada às nossas necessidades. No fim das contas, o consórcio mundial da web não é, e não será nunca, tão interessante, misterioso e deslumbrante quanto a vida real.

***

[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]

domingo, junho 24, 2012

Mostrar para Esconder: O Papel da Mídia na Construção do Conformismo - Parte 2

24 de junho de 2012


2. DO ESPETÁCULO À INVISIBILIDADE

“Tudo aquilo que engana parece liberar um encanto”.
Platão.

Após longa e gostosa espreguiçada, o secretário arruma as folhas do
relato e se prepara vagarosamente para retomar o trabalho. Impaciente,
Nádia cruza as asas na altura do peito enquanto marca com o bater da
pata o nervoso passar dos segundos.
O duelo silencioso que se instala entre os dois seres usa olhares,
gestos e caretas como espadas afiadas da luta entre a urgência de
desvendar a realidade e o sossego de quem, ao nadar no fluxo da
correnteza, resiste a qualquer mudança. Ciente das dificuldades do
embate, em que dúvidas e novas perguntas precisam cutucar o senso
comum, a coruja se aproxima do ajudante e sinaliza o desejo de
sussurrar algo ao pé do ouvido:
- “Bem-vindo ao espetáculo!”, murmura o bico protegido pela asa em
forma de concha.
- “Espetáculo... de que...?!?”, indaga o homem ao estranhar a atitude
e as palavras.
- “Ora, querido humano de óculos, estou me referindo a tudo aquilo que
ajuda a vender mais jornais, livros, revistas, CDs ou a garantir os
índices de audiência. Chamo de espetáculo aquilo que, insólito ou
corriqueiro, pode ser separado dos seus elementos constitutivos e
transformado em show de vida ou de morte”, arremata a coruja ao virar
as costas em tom de provocação.
- “O que você quer dizer com isso?”, pede o secretário ao cair na armadilha.
- “Se, de um lado, o cardápio da imprensa sensacionalista sempre foi à
base de notícias de variedades, fofocas de famosos, violência, sangue,
sexo ou dramas humanos, temperados com certo ar de mistério, de outro,
não há meio de comunicação que, apesar de manter a respeitabilidade,
esqueça que são esses pratos a elevar as vendas e a aumentar a
audiência. O inusitado, insólito ou inesperado dá cor à rotina
cinzenta do dia-a-dia, provoca emoções, gera empatia, atrai as
atenções e cutuca a curiosidade.
Como critério de seleção, a importância do acontecimento em termos de
compreensão das causas e consequências para a vida coletiva cede o
lugar à busca do sensacional e do espetacular presentes em fatos que
interessam às grandes maiorias, não envolvem disputas, não provocam
divisões, geram uma comoção capaz de despertar uma multiplicidade de
reações, mas não uma atitude que leve o cidadão comum a se envolver na
mudança do que serviu de caldo de cultura à produção da realidade.
Imagens e comentários não se distanciam do que atrai, do que integra o
consenso social existente ou pode ser facilmente assimilado como tal
ao mesmo tempo em que põem em cena a gravidade, o caráter dramático,
trágico ou cômico de um fato. Ao exagerar a importância desses
aspectos, a mídia cria símbolos, fantasias, medos, fobias ou,
simplesmente, representações falsas da realidade na medida em que, a
exemplo do prestidigitador, atrai a atenção para algo que distrai o
público e o impede de ver o essencial, no nosso caso, as razões
profundas que gestaram os acontecimentos.
Na busca incessante pelo furo de reportagem, pelo que rompe com o
cotidiano, até a morte se transforma em show a ser explorado. Este
processo não só banaliza a violência como introduz princípios de
análise que servem de lentes pelas quais as pessoas passam a ver e
interpretar o mundo. Atraído pelo espetáculo e tornado cego pelas
evidências que, supostamente, deveriam possibilitar uma visão mais
ampla da sociedade, o público incorpora e reproduz a leitura enviesada
dos acontecimentos e desconsidera as relações cotidianas, rotineiras,
e aparentemente banais nas quais estão as explicações para os eventos
espetaculares que marcam o tempo da mídia”.
- “A teoria parece boa. O problema é entendê-la na prática!”, afirma o
homem ao interromper bruscamente o relato da coruja.
- “Se é de exemplos que você precisa, aí vão eles! Vamos começar pelas
chuvas de verão que transformam São Pedro em carrasco dos mais pobres.
Via de regra, imagens e comentários retratam o que o repórter enviado
ao local pôde constatar no curto período de tempo em que aí
permaneceu. Vídeos de casas inundadas ou derrubadas pela correnteza,
de ruas e avenidas transformadas em corredeiras ou de desmoronamentos
filmados em tempo real se alternam aos de grupos de socorro, aos de
manifestações de solidariedade e às falas dos moradores que costumam
reproduzir o que ouviram nos noticiários.
Numa aparente investigação objetiva da realidade, são ouvidos
especialistas, prefeitos, governadores e testemunhas oculares das
tragédias descritas. Quando a sorte ajuda, há um vídeo amador ou uma
foto de celular que retrata o momento mais dramático, a situação mais
inusitada, enfim, o que se destina a chamar a atenção do público e
proporcionar a audiência almejada. Na apuração das responsabilidades
costumamos encontrar três grandes linhas de investigação: o nível de
chuvas acima do esperado, que caracteriza o acontecimento como
catástrofe natural; a estrutura geológica do terreno, em relação à
qual pouco ou nada pode ser feito; e, finalmente, o fato de a
população carente estar ocupando áreas de risco, apontado como
principal responsável pela tragédia ao lado de um Estado que alega não
ter condições de controlar a ocupação desordenada do solo e está
fazendo o possível para providenciar abrigo aos desabrigados.
O que não aparece, ou é diluído a ponto de passar desapercebido aos
olhos do público, é o cotidiano das vítimas feito de trabalho precário
e mal remunerado, exploração, pobreza, menor escolaridade, maior
dificuldade de acesso a oportunidades de novos empregos, desemprego de
longa duração, angústia e insegurança diariamente vivenciadas por quem
se vê, literalmente, sem alternativas. Isso sem contar a especulação
imobiliária, a ausência do Estado no cumprimento de seu papel de
garantidor dos direitos essenciais e a sua negligência em obras e
ações efetivas na prevenção de catástrofes, tão regulares quanto o
ritmo das estações. Na medida em que as luzes do show da vida ocultam
a rotina que não faz notícia, produz-se uma anestesia do pensamento
capaz de levar as pessoas a não perceberem o óbvio: ninguém mora em
áreas de risco porque quer, por teimosia, por falta de consciência ou
irresponsabilidade, mas porque sua situação não oferece outra
possibilidade.
Num passe de mágica, chuvas acima da média não fazem boiar em suas
águas as contradições do dia-a-dia que permanecem invisíveis, pois não
há nada espetacular no sofrimento dos pobres e marginalizados, mas
inocentam o sistema econômico ao apontar as vítimas como principais
responsáveis pela própria desgraça. Desta forma, nenhum meio de
comunicação precisa mentir para que a anestesia do pensamento seja
revigorada com as informações divulgadas. Basta distrair o público com
a notícia-espetáculo, tão verdadeira quanto o coelho que sai da
cartola do mágico e profética quanto basta para que a próxima chuva
abundante demonstre a veracidade das constatações divulgadas no
passado.
Do mesmo modo, a realidade das periferias das grandes cidades só vira
manchete quando um crime hediondo, uma ação arrojada dos traficantes,
a ocupação dos morros pelas forças policiais ou algo com forte cheiro
de violência, sexo e sangue é levado ao conhecimento do público. Como
nos casos das chuvas de verão, a lógica do espetáculo consegue
desinformar ao informar. Os corpos das vítimas, as marcas dos tiros, a
reconstrução dos acontecimentos através da animação gráfica ou de um
mapa, as imagens da operação policial, algumas entrevistas
cuidadosamente selecionadas e a confirmação implícita de que a
periferia é um lugar sinistro, violento, sem lei, onde a fronteira
entre um morador honesto e um delinquente é sempre tênue e porosa, o
que transforma o ambiente em algo instável e aterrorizante. Logo,
sempre que alguém falar em favela, morro ou citar bairros tristemente
famosos, a imagem recorrente será a de um menino armado a serviço do
tráfico, da droga vendida como laranjas na feira, das armas que
circulam indiscriminadamente, enfim, de um estado de guerra latente
onde tudo pode acontecer de uma hora pra outra.
Ninguém duvida de que, por exemplo, o complexo de favelas do Alemão,
no Rio de Janeiro, seja um lugar difícil não só para viver, mas também
de descrever e de pensar por parte da mídia. A complexidade das
situações vividas pelos moradores impede que imagens simplistas e
unilaterais representem a amplitude e a variedade de vivências que se
dão em seu meio e permitam uma compreensão profunda dos
acontecimentos. O problema é que o caldo de cultura capaz de explicar
o porquê das coisas não tem existência visível nos meios de
comunicação a não ser quando algo fora do comum se torna objeto de
interesse de algum deles. O tratamento jornalístico destinado ao
acontecimento deforma a realidade pelas lentes do espetáculo, do que é
digno de virar manchete, mas não permite um trabalho de reconstrução
da realidade na medida em que o cotidiano é ocultado pela melhor
imagem, pela tomada mais expressiva e emocionante, pelas cenas de ação
que fortalecem e reafirmam as visões estereotipadas das periferias e,
portanto, o processo pelo qual os que mais sofrem se tornam
invisíveis”.
- “Você falou em estereótipos e invisibilidade...?!?”, indaga o homem
ao tentar disfarçar a confusão em que se encontra.
- “Exatamente!”, responde a coruja com semblante sério e compenetrado.
“Sempre que uma pessoa ou um grupo humano são representados através de
um estereótipo, um estigma ou um preconceito, o resultado final é
sempre o de anular as pessoas ao fazer desaparecer o que lhe é
singular. Quem está na frente do repórter não é a Maria, o José, a
Francisca ou o Severino, mas sim ‘a favelada, o negro, a garota
perdida, o moleque perigoso’ e assim por diante. Tudo aquilo que ajuda
a entender e a distinguir uma pessoa simplesmente desaparece sob os
traços estereotipados que a lógica do espetáculo reforça ao estimular,
ou justificar implicitamente, a adoção de atitudes preventivas que
marginalizam e condenam as próprias vítimas.
A história de vida, desejos, sentimentos, ambições, qualidades,
defeitos, a capacidade de resistir ao sofrimento, as injustiças
sofridas, enfim, tudo desaparece sob o manto cinzento do estereótipo.
E quando some a realidade material que ajudou a construir o que cada
sujeito é, faz, acredita e deseja, a elite mata dois coelhos com uma
cajadada só. De um lado, o retrato produzido pela mídia inocenta de
antemão ouvintes, leitores e telespectadores de suas responsabilidades
na injustiça social. Os cidadãos comuns acreditam piamente que nada
têm a ver com a existência das favelas, do racismo, da marginalização,
da pobreza, da violência e das escabrosas realidades que marcam a vida
em sociedade. Todos se sentem inocentes porque acreditam que as coisas
são assim e não adianta teimar, que no mundo há uma luta encarniçada
entre o bem e o mal, que ninguém mandou essa gente morar em favelas ou
em ambientes degradados, mas que este foi seu destino, ora por
ignorância, ora porque fizeram por merecer.
Ao apagar a história individual e coletiva, a lógica do espetáculo
focaliza o reflexo que cega a capacidade de ver a injustiça presente
nas relações de propriedade, de trabalho e de poder, e que se
manifesta na particularidade da história de cada um e na vivência
coletiva de grandes grupos humanos. Mais uma vez, a história é
reafirmada como obra do acaso e não como produto de estruturas que
ganham vida na atuação e na omissão de cada um enquanto membro de uma
classe social. É por acaso que as favelas nascem e crescem em número e
tamanho incomodando com sua presença as pessoas de bem. É por acaso,
ou por um capricho da própria vontade, que o aviãozinho da droga busca
a vida onde só pode encontrar a morte. É por acaso, preguiça,
incompetência ou por acomodação que há gente sem trabalho,
subempregada, sem casa ou vivendo do lixo. E, neste último caso, as
distorções são ainda mais gritante na medida em que o espetáculo dos
lixões a céu aberto leva muita gente a acreditar que só há catador
porque os moradores da cidade se desfazem de coisas que ainda servem
ou poderiam ser reaproveitadas e não porque uma realidade social
injusta transforma seres humanos no último elo da economia antes do
chorume.
Para quem está, ou se sente, um degrau acima dos desqualificados, a
invisibilidade proporcionada pela lógica do espetáculo não é sinônimo
de não perceber a presença física do outro, mas de ignorá-lo ou de
decretar que, enquanto desqualificado, este outro não tem nenhuma
relevância social. A idéia pela qual cada um deve saber o seu lugar e
aceitar humildemente o que lhe é oferecido é parte da cotidiana
relação de classes que marca as diferenças e os critérios pelos quais
se define quem é ou não importante, quem tem direito ou não de
incomodar os demais. Que o catador peça papelão, latinhas, vidros,
plásticos ou metais com aquele jeito submisso e cordial, próprio dos
humilhados, é algo que todos aceitam e prezam. Mas que esse sujeito
incômodo, mal-cheiroso e potencialmente perigoso por morar no submundo
da rua peça água, comida, dinheiro ou transforme a calçada em depósito
momentâneo para arrumar a carga do carrinho, isso já é demais. E caso
ele esbarre em alguma coisa ou em alguém, a sua pequena distração
abrirá o caminho de mais uma humilhação, vinda do cidadão de bem que
se sente acima de sua condição social”.
- “E o segundo coelho?!?”, pede o homem ao mostrar que não perdeu o
fio da meada.
- “O segundo efeito da invisibilidade pela lógica do espetáculo é que
os marginalizados se convencem de que eles não têm direito a ter
direitos. Ao interpretarem a própria situação como fracasso individual
no estudo, na busca do sucesso, no trabalho e no aproveitamento das
chances de subir na vida, as vítimas do estereótipo partilham a
necessidade imprescindível de se manterem afastadas dos últimos
lugares da fila dos derrotados com os quais convivem. É comum que
estas pessoas se deparem frequentemente com a escolha entre o caminho
do tráfico, do crime e da violência e o do trabalho desqualificado
que, apesar de não oferecer chances concretas de ascensão social,
proporciona o conforto moral de não estar entre os drogados, os
traficantes, os bandidos ou quem se prostitui para viver. A carteira
de trabalho assinada ou o ser conhecido como trabalhador honesto é
tido como sinal de distinção em relação à delinquência e motivo de
orgulho.
Se o lugar de moradia, a cor da pele, a situação de marginalidade ou
as injustiças sofridas colocam as vítimas a um passo de atravessar a
fronteira do crime, provar que não se é nem vagabundo, nem bandido,
apesar da vida de privação, torna-se caminho obrigatório para
reafirmar a própria dignidade. Motivo de felicidade e disposição para
enfrentar a vida, a luta para não descer mais um degrau na hierarquia
social pode não afugentar a pobreza, mas proporciona a alegria
resignada ao pouco que se tem. Quem se sacrifica para se afastar dos
últimos lugares, ou não depender da caridade alheia, tende bem mais a
se confortar com os casos de quem está pior do que a lutar para fazer
valer o direito a ter direitos.
Fora do seu ambiente, o desafio de manter a dignidade passa por negar
a origem social, mentir em relação ao local de moradia e evitar
situações que possam repercutir em novas derrotas e humilhações. Via
de regra, as vítimas dos estereótipos sociais preferem não ser vistas,
não aparecer, não serem identificadas por sentir que sua situação não
oferece chances reais de reconhecimento. Sempre à espera de novas
humilhações, preferem perder por não escalar o time do que amargar uma
goleada. Ao aceitar espontaneamente, e por antecipação, os limites da
posição social que ocupam, os oprimidos contribuem involuntariamente
com a própria opressão na medida em que se calam, ficam vermelhos de
vergonha, baixam o olhar, diminuem o tom de voz, sentem-se
desconfortáveis ao interagir com seus superiores no trabalho ou com
alguém de uma classe social acima da própria. O ditado pelo qual
‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’, transforma em sabedoria o
agüentar passiva e resignadamente situações de humilhação,
incompreensão, negação dos próprios direitos por parte de quem é visto
como superior. O jeito assumido como certo, então, é fazer de tudo
para se reservar, se preservar e sumir do olhar alheio.
Viver o fato de que não se tem direito a ter direitos tende a fazer
com que as próprias vítimas se distanciem do que cheira a envolvimento
na ação política de movimentos e representem como ‘metidos à besta,
abusados ou desaforados’ aqueles que, em seu meio, resistem a aceitar
esta situação ou se rebelam. Ora por identificá-la como caminho para a
desonestidade e a corrupção, ora porque, na situação de humilhado, se
vê incapacitado de atuar no que define o próprio futuro e o dos
familiares, o oprimido só consegue se imaginar no âmbito da política
pela lógica do espetáculo: alguém dotado de superpoderes e de uma
vontade capaz de resolver num estalar de dedos a situação dos pobres.
No fundo, é isso que ele espera dos governantes, mas o problema está
justamente aqui: não age e, no máximo, torce para que outros façam por
ele por serem aqueles que têm escolaridade, conhecimento, dinheiro e
poder.
Longe de ser vista como espaço de disputa dos interesses de classe e
caminho para a construção coletiva de um direito, a política é algo
que está fora do seu alcance. O que resta é pedir a Deus para que
apareçam melhores oportunidades de trabalho, para que ninguém da
família fique desempregado ou doente, para que haja sempre horas
extras ou até pinte um segundo emprego. É isso que possibilita comprar
mais, adquirir aquela tv, geladeira ou celular dos sonhos, sinônimo de
mais dignidade, de um degrau acima dos níveis mais baixos da escada
social, enfim, de um afastamento mais claro da incômoda fronteira com
o crime.
- “Ao mesmo tempo, não dá pra negar que nem todos agem assim...”,
indaga o ajudante em tom de contestação.
- “As exceções mais confirmam do que negam a regra”, rebate Nádia ao
riscar o ar com um rápido movimento da asa. “O que precisamos deixar
claro é que os efeitos produzidos pelas imagens da mídia nas classes
sociais não podem ser divididos com precisão cirúrgica entre os
membros destes grupos. Estou me referindo, por exemplo, à outra face
da invisibilidade: a arma como passaporte para sair do esquecimento e
pela qual quem passava sem ligar para o marginalizado, agora lhe
obedece.
Enquanto os estereótipos reafirmam entre a maioria dos dominados que
não têm direito a ter direitos e fortalecem sua invisibilidade, a arma
permite percorrer o caminho inverso, da sombra que fazia o humilhado
desaparecer ao medo que o torna visível. Ao empunhar um revólver, um
fuzil ou uma faca, o esquecido recupera sua visibilidade, exige ser
tratado como sujeito e repassa pelo caminho da violência a fatura da
dívida social da qual todos falam.
Como passaporte para a visibilidade, a arma é um grito de socorro, um
pedido de reconhecimento e valorização, mas, ao mesmo tempo, o pior
caminho possível na medida em que esse tipo de reconquista da
visibilidade trilha as sendas do crime e faz com que o sujeito vista a
carapuça que o preconceito lhe preparara. Sua afirmação não
proporciona o reconhecimento sonhado e sim o pacote completo de
maldições que o medo faz ressoar na alma do assaltado e a conseqüente
comprovação dos estereótipos divulgados. Ao optar pelo crime, o
invisível de ontem se desarma das condições que poderiam proporcionar
a denúncia das injustiças, a busca de apoios e aliados, a criação de
fatos que marquem a saída da resignação rumo à construção do direito a
ter direitos. Por sua vez, diante da arma, a vítima sente medo e ódio,
tende a afasta-se abruptamente de tudo o que poderia levá-la a se
solidarizar com o ambiente no qual nasceu o seu agressor e reafirma
como verdadeiras e dignas de fé as leituras do real que a mídia vinha
trabalhando.
O pedido de socorro se transforma, assim, em fonte de nova e mais
pesada condenação alimentando o ciclo que reproduz a marginalização e
a invisibilidade. O dinheiro do assalto e do tráfico proporciona
instantes fugazes de respeito e visibilidade, a admiração do grupo, a
satisfação de desejos de consumo estimulados pela propaganda e negados
pela realidade social, mas, ao mesmo tempo, legitima o estigma, o
estereótipo, a invisibilidade, a humilhação e a renúncia à luta para
ter direitos própria das maiorias marginalizadas”.
- “Mas de que forma isso contribui para anestesiar o pensamento de
ouvintes, leitores ou telespectadores?”, pede o homem ao deitar
suavemente a caneta nas folhas do relato.
Feliz com a preocupação do secretário, a ave permanece silenciosa por
alguns instantes. Os gestos produzidos pelos movimentos das asas
antecipam o teor das palavras. Um rápido piscar de olhos... Um
movimento brusco que parece cortar o véu das aparências e...
- “Além das corujas falantes, os representantes pensantes da sua
espécie estão sempre em busca de um sentido para o que fazem, pensam
ou vêem. Trata-se de um processo incessante alimentado pelas
contradições com as quais nos deparamos e pela própria dinâmica dos
acontecimentos que transforma fatos e respectivos sentidos em amantes
que se encontram por instantes, se entregam, se afastam e renovam
seguidamente a procura recíproca.
A necessidade de ir além das aparências é algo que inquieta, demanda o
esforço constante de questionar as próprias percepções e, obviamente,
não se contenta com os primeiros resultados. A sensação de satisfação
não está no significado imediato que foi encontrado, mas sim em ser
parte ativa de uma busca que mantém em alerta, faz duvidar das
aparências, nunca encontra a plenitude e só permite breves momentos de
descanso.
Por outro lado, para que possam consolidar uma determinada maneira de
ver a vida, a anestesia e a desativação do pensamento precisam se
focar nas aparências, cristalizar sentidos e percepções que não
dependem do sujeito, mas de idéias, valores, símbolos e sentidos
capazes de paralisar o significado que este atribui às relações
sociais fazendo com que percam seu caráter histórico e contingente aos
olhos das grandes maiorias.
Esta dinâmica, que marca a formação e a evolução do senso comum,
transforma o que o telespectador vê na tela em algo cuja projeção de
sentido ele já vinha demandando pela sintonia entre sua busca
particular, típica de qualquer ser humano, e o conjunto de valores e
crenças com base nas quais ele realiza a própria busca e que, via de
regra, não se distanciam fundamentalmente dos moldes preparados pela
elite. O que interessa ao cidadão comum não é encontrar algo que o
force a percorrer o tortuoso caminho que conduz à superação das
aparências e sim um simples atalho que lhe permita se deparar com um
sentido imediato, capaz de proporcionar a satisfação desejada. Estamos
falando de algo pequeno, rápido, profundo quanto basta para não dar
trabalho e apontar o que está certo ou errado. Assim, cada imagem e
comentário que produzam a coincidência entre fatos e sentidos
proporcionam ao ouvinte, leitor ou telespectador a certeza de ter
achado o que procurava. Trata-se de uma sensação de gozo, diante do
qual o pensamento cessa. O encontro com um significado, de fato,
proporciona sempre um relaxamento da tensão que alimenta o pensamento
e produz um prazer que desativa instantaneamente a capacidade de
refletir criticamente sobre o que foi percebido como uma representação
satisfatória e, temporariamente, convincente do presente.
É claro que se trata de um relaxamento provisório, pois a realidade
não pára e exige do pensamento a procura de novos significados, mas,
para isso, a sequência de imagens, notícias, comentários produzida na
lógica do espetáculo, gera elementos suficientes para tornar
desnecessário o trabalho de pensar no que havia sido visto, lido ou
ouvido. Quanto mais esse fluxo ininterrupto ocupa espaço em nossa vida
diária, mais aumentam as possibilidades de obter uma conexão estável
entre acontecimento, significado e sensação de prazer e menos o
pensamento é convocado a entrar em ação para questionar o que parece
líquido e certo. Se aos vários tipos de noticiários acrescentamos o
bombardeio das novelas, seriados, programas de auditório e demais
enlatados, não vai ser difícil perceber que a chance de o homem comum
parar pra pensar diante da tv passa a ser algo extremamente reduzido e
limitado no tempo, pelo menos enquanto ele transferir à mídia a sua
busca de sentido”.
- “Mas isso é um perigo!”, afirma o ajudante sem levantar os olhos do papel.
- “Exatamente!”, confirma Nádia ao menear a cabeça. “Na medida em que
a própria morte vira espetáculo e o espetáculo produz significados que
desativam o pensamento, os membros de sua espécie começam a se
acostumar com imagens e realidades que, anos atrás, os fariam sair da
sala, mudar de canal ou desligar a tv. O que está em jogo é algo sério
e preocupante. De um lado, temos a banalização do mal, que leva à
incapacidade de se indignar diante do que deveria ser abertamente
condenado, e, de outro, o convite implícito a repetir sem remorso o
que acaba de ganhar as cores da normalidade.
Onde o pensamento não opera, ou passa por longos períodos de
anestesia, não temos apenas um ficar calejado, um acostumar-se
progressivo à situação de violência e injustiça, como o imaginário do
sujeito o incita a agir da mesma forma sem que haja uma reflexão
pessoal que bloqueie ou obstaculize este processo. Quando o aparelho
de som, a televisão ou o rádio transmitem a música pela qual ‘um
tapinha não dói’ sem que isso seja acompanhado por uma rejeição social
à altura da situação ou de uma denúncia que trave o processo de
divulgação, ou seja, sem que o senso comum se depare com algo que
marca e reafirma como intolerável semelhante atitude, há um forte
aumento da tendência a que um número maior de pessoas passem a
realizar este ato sem reservas. Na medida em que o pensamento se
encontra desativado pelos mecanismos que apresentamos e se produz um
consenso tácito em volta do que é repetido, tocado e dançado sem
limites e nas mais variadas situações, a publicidade do gesto tende a
se tornar um incentivo à sua realização. No inconsciente das pessoas,
a idéia de permissão, autorizada pelo silêncio da falta de condenação,
transforma-se em estímulo à realização do ato, em voz que repete ‘Vai
lá e faça!’ Além de impedir a indignação, a banalização do mal tende a
ampliar o próprio mal e a fazer com que os humanos reproduzam atos
condenáveis sem sentimentos de culpa.
Neste sentido, vale a pena se perguntar quantas cenas de violência,
veiculadas na lógica do espetáculo, um adolescente viu até completar
os 18 anos; quantos crimes virtuais ele cometeu em jogos eletrônicos
ou quantos adversários eliminou a tiros experimentando a satisfação de
sair vencedor por multiplicar as mortes. Será que isso tudo serve
apenas para dar vazão aos instintos sem maiores consequências? Ou não
é o caso de se perguntar até a que ponto contribui para legitimar algo
bem mais profundo e complexo que, ao entrelaçar-se com os mecanismos
descritos, transformará o pôr fogo em um morador de rua numa
brincadeira que proporciona uma prazerosa descarga de adrenalina sem
maiores consequências? Em que medida o vazio de pensamento
seguidamente produzido torna-se condição suficiente para banalizar a
própria condição humana? E o problema aqui não é apenas a crescente
crueldade dos maus, mas, sobretudo, a indiferença e o silêncio em que
mergulham as pessoas que se definem como sendo do bem.
Ao dar sua contribuição essencial na tarefa de desativar o pensamento
e tornar invisível a realidade que produz os acontecimentos, a lógica
do espetáculo faz com que as notícias mais chocantes e os fatos mais
escandalosos possam até provocar uma comoção social momentânea, mas,
produzem simultaneamente a sensação de que não há o que fazer porque a
vida é assim. A impotência que vai ganhando corpo se propaga na medida
em que o conjunto da obra não revela que estamos num mundo em
construção, onde situações e possibilidades dependem da intervenção e
da omissão de indivíduos, grupos, classes ou setores sociais, mas sim
de um acaso incontrolável do qual sempre podemos esperar todo tipo de
surpresas.
Neste contexto, desativar o pensamento é também desativar nas grandes
massas da população a capacidade de visualizar de que há sim
alternativas, de que não há nada definitivamente perdido no campo da
organização social, de que as chances de mudanças são reais, de que há
espaço para dar vida a algo que contraria os valores, as idéias, as
representações, os sentidos, os símbolos que, até o momento, marcaram
o cotidiano viver em sociedade. Em outras palavras, a lógica do
espetáculo imobiliza e anula o ato de pensar como condição para dar
início a algo que não existe, a um movimento, a uma formação social ou
a uma representação da vida que ainda não está presente, contribuindo
assim para que tudo pareça natural e imutável. E quando nas maiorias
se instala a convicção pela qual ‘não tem jeito’, qualquer meio que
tente negar esta percepção é visto como um exercício inútil de busca
do impossível. Por isso, arranhar o consenso que sustenta a ordem de
exploração torna-se algo cada vez mais complexo e menosprezado até
mesmo entre os que mais sofrem o peso da injustiça e que, não por
acaso, são os principais alvos da mídia.
Aos poucos, o cotidiano começa a se tornar o lugar onde não se pensa,
o âmbito em que quase tudo vem mastigado, pronto para ser engolido e
processado mecanicamente, onde o que importa são as emoções e os
instantes de prazer ou afirmação que proporcionam. Próximos deste
patamar, a simples possibilidade de pensamento crítico é condenada
como subversiva pelas elites, desqualificada como fora da realidade
pelas maiorias e taxada de inconsistente pela classe média. Ferir o
consenso que torna plausíveis as interpretações correntes do cotidiano
e trazer à tona o que não se quer ver gera dúvida e insegurança,
arrasa símbolos, faz precipitar os castelos no ar pacientemente
construídos para que os olhos dos de baixo não vejam o chão onde se
pisa”.
- “Então, isso quer dizer que...”, sussurra o secretário desconcertado.
- “Isso quer dizer que, para as grandes maiorias, o comum é repetir o
pensamento das elites como se fosse o próprio pensamento e o único
capaz de explicar a realidade. Em diferentes graus de complexidade, a
maneira dominante de ver e interpretar o cotidiano da história oferece
formulações que se credenciam como ‘a maneira certa de ver as coisas’
e proporcionam a sensação de ter encontrado o rumo pelo simples fato
de que há multidões caminhando na mesma direção e com o mesmo
propósito.
Mas, para dominar, não basta desativar a capacidade de pensar
criticamente. Faz-se necessário viabilizar uma visão de mundo no
interior da qual as pessoas possam dar sua adesão ativa, se emocionar,
propor e atuar sem sair do molde preparado e seguidamente adaptado
pelos grupos no poder. Por isso, vamos tratar agora de dois elementos
que os meios de comunicação não poupam esforços para consolidar:...”