A garrafa de Teacher’s e o copo de vidro no qual
foram colocadas três pedras de gelo estão à esquerda da máquina de escrever. Já
o maço de cigarros, ainda não aberto, e o cinzeiro metálico ficaram no lado
direito.
Um
breve momento de reflexão: o que significa essa disposição de objetos? Quer
dizer que há no coração um lugar cativo para a bebida? A nicotina e as demais
substâncias perniciosas não podem afetar a Grande Bomba de jeito nenhum?
“Perguntas
inúteis demais”, o ghost writer pensa.
Melhor começar logo o trabalho: um romance de mais ou menos 500 páginas para
outro zé-mané a fim de ser alguém na vida por meio da literatura.
O
relógio na parede lhe mostra que já são quase oito horas da manhã iluminada de
quase setembro. Um de seus melhores amigos costuma bradar: “Hoje é sexta-feira,
véi!”. Isso mesmo. Fim de uma semana em que tudo (quase) deu certo. É. Faltou
acertar os ponteiros com Suzana.
Ele
sacode a cabeça. “Deixa pra lá”, suspira. O importante mesmo foi ter recebido a
grana que o doutor Mário lhe devia por tê-lo transformado em uma celebridade
nacional da noite para o dia com os oito contos produzidos em três dias. O
escritor sorriu. Desafiava qualquer metido a sabidão a ter uma tempestade
cerebral parecida com a que teve depois de ter brigado, gritado, xingado e ser
xingado de volta pela mulher que ama.
Tudo
ao redor, na sala de janelas fechadas e lâmpada apagada, é silêncio. Também não
dá a mínima para os tênues barulhos do estéril turbilhão da rua.
Coloca
o papel na máquina e o deixa pronto para a primeira linha da história que
pescou em mais uma noite passada em claro – enquanto a “acompanhante” do
Coroadinho cujo número de celular vira nos classificados ressonava ao seu lado,
na cama. Sono pesado após mais ou menos hora e meia de sexo meia-boca.
Reconhecia que seu desempenho não fora dos melhores. Agora, mesmo se fosse um
garanhão de filme pornô muito provavelmente para a bela morena adormecida daria
no mesmo.
Destampou
a garrafa e despejou uísque no copo. Não estava de estômago vazio. Como de
costume, passou a madrugada assaltando a geladeira. Antes de desistir de uma
vez por todas de cair nos braços de Morfeu, teve como derradeiro lanche um copo
de leite e quase todo seu estoque de pãezinhos de queijo.
Abriu
o maço. O isqueiro estava em uma das gavetas da escrivaninha. Bem em cima da
resma de chamex. Acendeu o cigarro, expeliu fumaça pelas narinas como se fosse
dragão de desenho animado e depois lançou um olhar perdido para um ponto
qualquer da sala. Contra sua vontade, acabou tentando imaginar em que parte
desta São Luís quatrocentona e, principalmente, com quem Vanessa poderia estar
acordando.
Ele
sacode a cabeça de novo. “Que se dane. Agora é muito tarde. Tarde demais”.
Curva-se ligeiramente sobre a máquina. Adora a boa e velha Olivetti. Ela lhe
permite perceber com riqueza de detalhes a evolução do processo demiúrgico. O
computador, com seu “delete”, tira muito do sentido dessa lavoura arcaica.
Engoliu
metade do uísque, respirou fundo e mandou ver:
“O
veterano advogado César Astolfo era um vascaíno fanático. Quando viu Diego
Souza não marcar o gol que muito teria ajudado seu Trem-Bala da Colina a se
classificar para as semifinais da Libertadores, o especialista em defender os
pobres e oprimidos de patrões salafrários esbravejou e xingou o atacante além
do que seu frágil coração podia suportar”.
O
barulho da datilografia cessa. Ele relê o parágrafo. Mais uma vez a história do
coração. Até parece que está preocupado com algum eventual problema cardíaco.
Com a bebida, o cigarro e o sedentarismo – e já se vão uns bons cinco anos
nessa toada quase diariamente -, o ghost
se considera pronto para o seu primeiro enfarto. O primeiro e definitivo. Dá de
ombros. Quem sabe, não é não?
“Oi”.
A
voz da garota de programa – e “garota” é a palavra certa porque assim, no
“olhômetro”, ela parece não ter mais de 20 anos – era suave e tranquilizadora.
Aliás, alguém, em algum lugar do passado, ensinou a mocinha a não desperdiçar
palavras e movimentos. Todos os gestos dela eram perfeitamente calculados. E
sempre quando o escritor lhe fazia uma pergunta, por mais banal que fosse, a
menina pensava duas ou até mesmo três vezes antes de responder. Essas
respostar, é bom que se diga, nada tinham de patéticas ou sem relevância.
“Oi”,
ele devolveu. “Acordou cedo”.
A
garota sorriu. Um sorriso lindo. Vestia as roupas com que chegara ao
apartamento – blusa vermelha e calça jeans. O ghost gostou do cabelo dela: bem escuro, vasto, derramando-se pelas
costas feito a noite sem luar.
“Eu
sou assim”, ela declarou. Três sofás grandes e confortáveis por perto e mesmo
assim permanecia de pé, na metade da distância entre onde ele se sentara e a
porta. “Nunca fico na casa de um cliente mais do que o necessário”.
“Pelo
menos você beija na boca. Já é um avanço”.
“Tenho
muitas colegas que não beijam. Acho besteira. Eu beijo numa boa. Só não sinto
nada”.
Foi
a vez dele sorrir.
“Nadinha
mesmo?”
“Nada.
Porque pra eu sentir eu tenho que gostar do cara”.
“E
você não gostou de mim”.
“Bem...”.
O
escritor não conteve o riso.
“Obrigado
pela sinceridade”.
“Você
se ofendeu”.
“Não,
querida. De jeito nenhum. Gosto de pessoas autênticas. Na verdade, aqui e
agora, o único de nós dois sem um pingo de autenticidade sou eu”. Volta a ficar
sério. “Já quer ir embora?”.
“Depende.
Ainda vai precisar de mim?”
Ele
demora um pouco para responder.
“Sim,
eu vou precisar”.
“Muito
bem. O valor é o mesmo”.
“Meio
salgado”.
“Não
ouvi reclamação, ontem”.
“Não
mesmo, gata. É só zoação”.
“Muito
bem. O que quer que eu faça?”
“Nada
a ver com sacanagem, desta vez”.
A
menina fica meio séria, meio sorridente.
“Como
é que é?”
“Venha
cá. Sente aqui do meu lado”.
O ghost fica de pé. Está sem camisa. É um
desastre, em termos de preparo físico. A garota de programa teve essa mesma
opinião, quando o viu tirar a camisa. Pensou em aconselhá-lo a procurar uma
academia, e com urgência. Achou melhor calar a boca. Em geral, as pessoas não
gostam de ouvir certas verdades.
Ele
foi até a cozinha e voltou com uma cadeira. Deixou-a do seu lado direito, quase
encostada à escrivaninha. Em seguida, fez a menina sentar-se.
“E
agora?”, ela quis saber. “O que quer que eu faça?”
“Me
conta uma história”.
“Como
é que é?”
O
escritor sorriu.
“Você
só sabe dizer isso?”
“Não,
mas você concorda que isso é muito esquisito”.
“Reconheça
que está gostando”.
“Um
pouquinho. Nunca estive com um escritor antes”.
“Pois
este escritor aqui está pedindo que você lhe conte uma história”.
“Mas para quê?”
“Calma. Não precisa se exaltar. É o seguinte: não
sou um escritor normal”.
“Como
assim?”
“Meu
nome não aparece na capa dos livros”.
“Mas
por quê?”
“Porque
sou um escritor-fantasma. Para todos os efeitos, eu não existo”.
A
menina coçou a cabeça, contrariada.
“Não
to entendendo nada...”
“É
simples. Você conhece alguém que já pediu ou pagou pra alguém pra fazer um
trabalho escolar ou de universidade, não conhece?”
“Eu
mesma fiz isso, no ensino médio. Adivinha como foi que paguei?”
O
escritor ri mais uma vez.
“Você
devia ser bem popular, na sua escola. Agora, me responde: no trabalho aparece o
nome de quem fez ou de quem mandou fazer?”
“De
quem mandou, é claro”.
“Então,
o mesmo acontece comigo”.
“E
por que não quer que seu nome apareça?”
Ele
olha para o copo. Quase não há mais gelo. Ele se levanta, ruma outra vez para a
cozinha e retorna com um depósito de plástico. Senta-se, abre o depósito,
coloca duas pedras no copo, reforça a quantidade de bebida e por fim inunda seu
organismo com mais da bebida.
“Eu
poderia dizer que é por causa do dinheiro. Que não é pouco. Os caras que me
contratam tem muita grana e, quando você tem essa condição, acaba gastando com
futilidades. Porque isso o que eu faço no fim das contas é fútil. Inútil. Um trabalho de Sísifo”.
“De
quem?”
O ghost ignora a ignorância da garota.
“É
como trabalhar com jornal. O cara se mata o dia inteiro, a noite inteira, para
oferecer aos leitores as notícias do que aconteceu no dia anterior e um, dois
dias depois o jornal que ele batalhou pra colocar nas ruas serve pra embrulhar
peixe”.
Mais
uísque goela abaixo. Incentiva a loquacidade.
“Com
o livro acontece a mesma coisa. O cara escreve 40, 80, 100, um milhão de
páginas, transforma em livro, lança em uma noite de autógrafos concorrida... e
quando ele volta pra casa já está pensando no segundo. O primeiro vai encalhar
numa biblioteca ou numa livraria e, se quem escreveu for um cara famoso e a
história for boa, vai causar. Vai
possibilitar comentários, artigos, resenhas a respeito”.
“E
se o cara não for famoso?”
“O
livro encalha na livraria e na biblioteca do mesmo jeito. A diferença é que
ninguém vai ler. Ninguém”.
“Tá
falando isso com conhecimento de causa?”
A
pergunta foi disparada de forma tão direta que o desconcertou. Para se refazer
dela, precisou da ajuda da bebida. Já nem mais pensava em recorrer aos
cigarros.
“Não.
Eu nunca tive problemas com isso. Eu fazia parte de... de um clube de
escritores. A gente se reunia uma vez por semana. A cada encontro um de nós
mostrava alguma coisa que valesse a pena ser publicado”.
Sorri.
“Eu
nunca mostrava nada. Tudo o que eu fazia era uma merda”.
A
garota de programa lê o parágrafo na folha de papel. Os dois estão muito
próximos, agora. Quase pele com pele. Ele sente vontade de cobri-la de beijos,
jogá-la no chão, rasgar-lhe a roupa toda.
“Isso
aqui não me parece merda”.
“Ora,
muito obrigado. Mas já melhorei muito. Você precisava ler o que eu fazia,
naquela época. Quando estava mais preocupado em ouvir outras vozes, em vez de
ouvir a voz interior, que é a mais importante”.
“Mas
se é assim... então, por que você precisa que eu te conte uma história”.
“Porque
eu não quero ficar sozinho, agora”.
“Como
é que é?
“Jesus,
você gosta dessa pergunta!”
“E
você gosta de complicar em vez de explicar. Por que tá sozinho? Cadê tua
namorada?”
“Eu
não sei. A gente brigou”.
“Por
quê?”
“Estilos
de vida diferentes. Eu quero uma coisa tradicional: sustentar, com o que eu
faço, mulher e uma renca de meninos. Ontem, antes de eu te ligar, ela me disse
que o tradicional não tem nada a ver com ela. Quer ser independente até onde
der. Por enquanto, consegue muito bem se virar sozinha”.
“Gostei
disso”.
“Pois
eu não. Na hora, eu reagi mal. Achei que ela não queria era ficar comigo de
jeito nenhum. Fiz exigências. Ela não gostou. Gritamos. Brigamos. Falei o que
não devia. Levei um tapa. Ela foi embora. O “adeus” ficou flutuando, como um
balão que escapa da mão de uma criança. E agora eu estou aqui. E você também”.
“Esse
uísque faz de ti um tagarela”.
O
escritor ri. Mais alto do que gostaria. Bebe novamente.
“É.
Tem razão. Acho que agora é a sua vez de falar. Pode ser?”
A
menina se rende de uma vez. Pensa agora mais do que três vezes.
“Olha...
Certa vez, aconteceu comigo um negócio meio esquisito”.
“O
que foi?”
“Sabe
aquele filme dos Vingadores?”
“Sim”.
“Pois
é. Fui assistir quando estreou. Fui sozinha. A sala tava lotada. Cheia de guri
e de adulto se comportando como guri”.
“Sei
como é”.
“Assim
que entrei, um bando de gaiatinhos me chamou aos gritos de ‘gostosa’”.
“Falaram
a verdade a plenos pulmões”.
“Não
sei. O que sei é que não gosto de saliências pro meu lado. Por isso, me mandei
para as cadeiras mais distantes da tela. Quis ficar longe dos olhos e mais
ainda do coração”.
“Você
tem o dom da poesia. Acho que me apaixonei”.
“Sou
uma puta. Eu só faria você sofrer. Mas continuo: o filme começou e, uns cinco
minutos depois, vi uma menina sentada do meu lado esquerdo. Uma menina
loirinha. Acho que não tinha mais de 11 anos. E tava sozinha”.
Ela
consegue fisgar a atenção do escritor. O ghost
não liga mais agora nem para o uísque. No depósito de plástico, começa o
processo de degelo.
“Mesmo
com a sala iluminada apenas pelo brilho intenso da telona, reparei que ela se
vestia como se tivesse em casa: uma camisetinha sem nada por baixo e um
calçãozinho. As havaianas nos pés dela eram bem vagabundas”.
“Não
tinha ninguém com ela?”
“Não
mesmo. E como tenho às vezes a tendência besta de me preocupar com gente que
nem conheço e que não tem nada a ver comigo, fiz justamente essa pergunta pra
ela. E sabe que resposta ouvi?”
“Sei
lá”.
“Nenhuma.
A única coisa que ela me falou foi: ‘Esse filme não é muito bom, não’. Como se
com a idade que tinha soubesse tudo e mais um pouco de cinema”. Sorriu. E no
instante seguinte o sorriso sumiu. “Mas o pior foi depois”.
“E
o que aconteceu depois?”
“O
nariz dela começou a sangrar. E era muito
sangue. As gotas que caíam na camisetinha eram grossas feito chocolate líquido.
Fiquei muito assustada, mas não fiz alarde. Tremendo feito vara verde, saí da
sala e fui procurar algum funcionário do cinema. Não achei nenhum. Isso mesmo.
Imagina se estivesse pegando fogo ou alguém estivesse morrendo?”
“Sacanagem”.
“Pois
é. Voltei pra sala. Pra ver se ajudava a menina de alguma forma. Mas quando
volto pra minha cadeira a pequena simplesmente desapareceu”.
“Fantasminha
nada camarada, não é?”
Ela
ri.
“Pode
crer. Você precisava me ver, depois do sumiço dela: assustada, encolhidinha na
cadeira, até o filme terminar. Meu coração batia a 120 por hora”.
“Muito
bem. Gostei dessa história. Obrigado”.
“Vai
usar no teu livro?”
“Vou
tentar encaixar em algum momento”.
“Quando
receber o dinheiro pelo trabalho, vou querer a minha parte. Fui a principal
colaboradora”.
“Prefiro
te pagar de outra forma”.
Ela
sorri novamente e, cheia de malícia, pisca o olho esquerdo.
“Essa forma eu também gosto”.
Súbito,
pancadas firmes e frenéticas na porta principal. Alguém querendo entrar de
qualquer maneira.
“Meu
Deus”, a menina diz. “Quem será esse desesperado?”
“Não
sei. Vou ver”. O ghost se levanta.
“Toma
cuidado”.
“Deixa
comigo”.
O
escritor vai até a porta. Ao abri-la, deixa passar uma versão mais velha e
muito mais fora de forma de si mesmo. E não se trata de péssima condição
física. É como se algum câncer altamente maligno o estivesse levando
rapidamente para a cova.
A
contraparte do escritor veste farrapos. Na comparação, os mendigos da Rua
Grande, parecem executivos de alguma bolsa de valores. E parece ser contra um
bom banho e os mais recomendáveis hábitos de higiene.
O
velho para no meio da sala. Respira como se tivesse três metros de altura.
Quando fala, sua voz lembra a de folhas secas sendo pisadas e arrastadas:
“Está
tudo calmo? Ainda não começou a guerra contra os incas venusianos da oitava
dimensão? Acho que escolhi a plataforma temporal errada...”
O ghost olha para a garota de programa
(que ficou de olhos arregalados por causa do que disse o estranho e inesperado
visitante) e arremata:
“Quer
saber? Acho que não temos mais tempo pra isso”.
São
Luís, 20-24 de outubro de 2012