domingo, março 31, 2013

EPISÓDIOS


            O bilhete da loteria rasgado abandonado no assoalho imundo do ônibus

            passa a imagem do seu ex-dono dizendo para si mesmo

            “Ainda não foi desta vez!”

            O homem que põe as mãos na tampa do caixão que guarda

            o corpo de sua esposa pouco antes da primeira pá de terra

            ergue o rosto para o céu e tenta entender o como e a finalidade

            o menino que empina a pipa depauperada desvia o rosto

            coberto de suor e terra da carícia do pai ausente e antes de voltar correndo

            para os seus amigos de linha e cerol diz ao homem que vai vê-lo

            apenas nos fins de semana: “A mamãe tá em casa. Vai falar com ela”

            E o bêbado que se equilibra na calçada tão destroçada quanto sua vida

            perde o controle da bexiga lava os pés imundos e as japonesas gastas

            ouve o gracejo de um mototaxista e dispara pela avenida atrás do engraçadinho

            as pernas bambas por demais ébrias

            e então na direção contrária aparece um ônibus lotado

            e quando se percebe em perigo real e imediato o bêbado outrora equilibrista

            decide enfrentar o ônibus com o dedo médio em riste lembrando-se

            no derradeiro segundo daquele antigo brega:

“E QUE TUDO O MAIS VÁ PRO INFERNO!”

FÓRMULA 1 SEM BRAZUCAS?


Chico Landi, Nano da Silva Ramos, Emerson Fittipaldi, José Carlos Pace, Ingo Hoffmann, Alex Ribeiro, Nelson Piquet, Chico Serra, Raul Boesel, Roberto Pupo Moreno, Ayrton Senna, Maurício Gugelmin, Rubens Barrichello, Ricardo Zonta, Enrique Bernoldi, Felipe Massa... Sim, a lista dos pilotos brasileiros que participaram da Fórmula 1 é considerável e “considerada” – como diria qualquer legítimo regueiro daqui  de São Luís.
            Essa participação brasileira teve diferentes graus de sucesso. Senna e Piquet foram tricampeões. Emerson conquistou dois títulos. Já Boesel, Zonta, Moreno e Bernoldi não passaram de “meros” figurantes. (O meros vai entre aspas porque eles chegaram ao “circo” tanto em razão da quantidade de dinheiro que gastaram para realizar o sonho quanto por seus méritos. E mérito só o tempo, que é o senhor da razão, pode julgar com propriedade.)
            O Brasil chegou até mesmo a contar com uma equipe 100% verde e amarela. A Copersucar (ou, como querem os puristas e saudosistas, Escuderia Fittipaldi), diferentemente do que se aponta como um “episódio risível e melancólico da história da F-1, foi uma equipe que terminou o campeonato de 1980 na oitava colocação, duas à frente da poderosa Ferrari. Em 1978, Emerson, ao volante do modelo F5A, chegou em segundo no Grande Prêmio do Brasil, disputado no Rio de Janeiro.
Caso esse feito magnífico tivesse ocorrido nos tempos atuais, em Interlagos, muito provavelmente Galvão Bueno, ao narrá-lo, teria dado à luz sem ser mãe.
Assim como o desempenho dos “brazucas” variou muito, o apreço do nosso torcedor pela principal categoria do automobilismo já foi bem maior. Graças basicamente a Nelson Piquet e Ayrton Senna. Com seu bicampeonato, Emerson foi o primeiro a nos ensinar a ficarmos sentados na frente da tevê ou com a orelha colada ao radinho durante mais de 50 voltas. Anos mais tarde, foi por causa dele que também passamos a gostar de Fórmula Indy, via Bandeirantes, ainda mais com sua vitória épica nas 500 Milhas de Indianápolis.
Mas Senna e Piquet, com seus confrontos acirrados e a rivalidade estendida para o plano pessoal, fizeram o número de aficionados pela Fórmula 1 triplicar. Com a morte de Ayrton e sem outro brasileiro voltar a ganhar um título que fosse, essa paixão pela velocidade reduziu-se drasticamente. Hoje, eu me disponho a ficar acordado madrugadas inteiras à espera das sessões de treinos e das corridas. Para não precisar assistir ao VT na manhã seguinte. Muitos jornalistas especializados e os fanáticos mesmo por esse esporte podem fazer o mesmo. No entanto, nove entre dez brasileiros preferem passar essas mesmas madrugadas dormindo tranquilamente. E não dá para condená-los. Quem os criticaria, se estivesse no lugar deles?
Estou escrevendo a esse respeito em razão de um comentário que “pesquei” durante a transmissão do Grande Prêmio da Austrália. Não lembro agora quem o fez. Em todo caso, aventou-se a possibilidade de Felipe Massa – único brasileiro a posicionar-se nos grids da F-1 -, em caso de fracasso na temporada atual, seria demitido da Ferrari. Nesse caso, ele não encontraria espaço nas demais equipes de ponta e, por fim, desistiria de sua trajetória na categoria.
Não acho que seria para tanto. Creio que sempre haverá um piloto brasileiro no “circo”. A Fórmula 1 ainda conta com um mercado sensacional aqui no Brasil. Sem um representante local, a perda de dinheiro e de audiência seria catastrófica.
Agora, seria também muito bom se aparecesse outro brasileiro genial, capaz de ganhar um título. Para a galera daqui voltar a ficar em peso diante da telinha nas manhãs (e madrugadas) dominicais.

sábado, março 30, 2013

Diretor da UFRJ chama outras regiões do país de "atrasadas culturalmente"

http://educacao.uol.com.br/noticias/2013/03/27/diretor-da-ufrj-chama-outras-regioes-do-pais-de-atrasadas-culturalmente.htm

Léo Rodrigues
Do Portal EBC


Um e-mail enviado na última segunda (25) pelo diretor da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Ericksson Rocha e Almendra, gerou repercussão entre o corpo discente da instituição. A mensagem, que trazia um alerta sobre as punições cabíveis a organizadores de trotes, foi encaminhada a todos os estudantes de graduação matriculados nas variadas engenharias.

TROTES

  • Reprodução/Facebook
    Trote realizado por alunos da Faculdade de Direito da UFMG gera acusações de racismo
  • Divulgação/Frente Feminista
    Alunos da USP hostilizaram feministas durante trote em São Carlos. Alguns estudantes chegaram a ficar pelados
  • Mauro Vieira/Agência RBS
    Aluna pode ter visão comprometida depois de trote em escola no RS
O trecho do texto que gerou polêmica chama atenção para a existência de alunos que chegam à matrícula com cabelos raspados e que parte deles deseja levar trote, "uma mostra de quão atrasadas culturalmente são suas regiões". O diretor também aponta o risco da retomada dos trotes com a chegada de novos calouros, "sobretudo alunos do interior do país onde tal prática ainda é generalizada".
A reação ao e-mail foi imediata, tanto no grupo interno de mensagens como nas redes sociais, o que ocasionou um segundo e-mail de Ericksson Almendra, no qual reafirma a opinião de que "trote é sinônimo de atraso cultural" e que o uso do termo fora "intencional".
Ele mencionou outros exemplos de atrasos culturais, como as touradas da Espanha e os escorpiões na China, qualificados como "uma aberração gastronômica". Mas ressaltou: "não que a intenção tenha sido ofender, longe de mim, peço desculpas se isso ocorreu, mas tive sim a intenção de provocar. Espero sinceramente que mais, muito mais, alunos tenham se sentido incomodados ... e ... reflitam".

Ofendidos

Dois dias após a mensagem, alguns estudantes continuam trocando e-mails de indignação na lista fechada da Escola Politécnica. No grupo do Facebook, já são quase 250 manifestações. Um estudante do 7º período respondeu prontamente ao diretor:
"Sou contra esse tipo de recepção dos calouros. Mas não posso deixar de dizer que nesse e-mail o senhor fez alguns comentários que considero ofensivos. Tenho amigos fora do Rio, e nos estados deles às vezes a própria família ou amigos próximos raspa a cabeça dos aprovados. Conheço rapazes que tiveram a cabeça raspada, e meninas que rasparam a sobrancelha e saíam com curativos coloridos sobre os olhos, com orgulho de terem passado para uma universidade. Não se sentiam ofendidos. E acima de tudo, não são pessoas culturalmente atrasadas".
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Festa para calouros, trotes têm histórico de violência; reveja casos10 fotos

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Nessa época do ano, é comum que alunos veteranos preparem a "recepção" dos novos colegas em faculdades e universidades. Do tradicional corte de cabelo aos banhos de tinta, os trotes costumam ser apenas uma brincadeira saudável. No entanto, são frequentes os casos de trotes violentos em todo o país. Um dos mais trágicos foi o que levou à morte do estudante Edison Tsung Chi Hsueh, em 1999. Calouro da Faculdade de Medicina da USP, ele foi encontrado morto dentro de uma piscina após um churrasco de recepção. Quatro pessoas chegaram a ser acusadas por sua morte, mas o caso foi arquivado em 2006. Veja outros Leia mais César Rodrigues/Folhapress
Confira os e-mails na íntegra:
Prezados
Esta mensagem se dirige a todos os alunos da Escola Politécnica, calouros e veteranos.
Estamos recebendo uma nova leva de calouros, 615 neste primeiro período. Assim, nunca é demais lembrar que na Escola Politécnica
- é proibido dar trote
- é proibido levar trote
- é proibido assistir trote
Há um código disciplinar e ele é aplicado. Há cinco anos foram 25 os punidos e mais da metade eram calouros. Submeter qualquer pessoa a constrangimentos é crime. Tratar isso, não como o crime que é, mas como um problema disciplinar é uma opção da Escola, é uma atitude educativa, não repressiva. Mas, punido, um aluno perde acesso a quaisquer benefícios concedidos pela Universidade, bolsas, iniciação, intercâmbio, viagens, etc.
Vejo entretanto, com muita satisfação, que não há punições já há três anos. Mais ainda, vejo surgirem formas muito mais positivas de receber os novos colegas. Há gincanas, há churrascos, há palestras, há o mangue. Veteranos de um de nossos cursos criaram até mesmo uma forma de "mentoring" com os calouros: cada veterano voluntário torna-se conselheiro acadêmico de um calouro. Em suma, estamos fazendo jus ao conceito de grande escola que temos.
Mas os trotes não acabaram e há risco de retomarem alguma força com a chegada de grande quantidade de calouros de outras regiões, sobretudo alunos do interior do país onde tal prática ainda é generalizada. Acabamos de ver alunos de um determinado Estado chegarem à matrícula com os cabelos raspados. Em geral, uma parte de tais alunos querem, desejam, "levar trote", uma mostra de quão atrasadas culturalmente são suas regiões. Juntar alunos que querem levar trote com outros que querem dar, esse é o risco.
Ficam apenas dois alertas. Primeiro: em atividades do tipo churrasco, mangue, chopadas, etc. há a possibilidade de surgirem brincadeiras, competições, joguinhos, ...  São ótimas, mas se forem impostas e/ou se se destinarem apenas aos calouros, ultrapassa-se uma fronteira perigosa. Qual seria então a diferença para um trote? Segundo: impor aos calouros a tarefa de esmolar em esquinas longe do Fundão é algo muito, muito arriscado. Pode além de crime de constrangimento, pode ser considerado uma extorsão, além de submeter os colegas a risco de atropelamento. Há 6 anos os 25 punidos o foram pois um transeunte os fotografou no Largo da Carioca com um celular e as fotos nos foram enviadas. Houve quem propusesse encaminhar os envolvidos para a Justiça comum.
Já houve o caso de um veterano punido porque um calouro sofreu um pequeno acidente, não relacionado com as brincadeiras, mas como se tratava de um trote, estava sob a responsabilidade de quem o promovia, que não cuidou de sua segurança. E, neste momento, há um processo policial em andamento apurando as responsabilidades por uma briga, e a consequente lesão corporal, numa dessas chopadas pois a segurança dos frequentadores é responsabilidade dos organizadores.
Atenciosamente
Prof. Ericksson Rocha e Almendra
Segundo e-mail
Prezado alunos
Recebi já algumas mensagens sobre meu texto e a menção que fiz aos atraso cultural. Recebi as mensagens como uma crítica construtiva.
Sou piauiense, tenho irmãos e sobrinhos universitários lá e em Pernambuco, regiões em que os trotes são ainda comuns. Não generalizo a observação, mas acho sim que trote é sinônimo de atraso cultural. Não é rito de passagem, não é coisa de estudante, não é natural ...
Pensei bastante quando inclui essa observação no meu texto. Não foi ideia minha, mas de um calouro. Sim, de um calouro que ao ser perguntado por mim sobre a cabeça raspada respondeu "sabe como é... sou de um Estado atrasado".
Há várias formas de lutar pelo que acreditamos ou contra o que achamos errados. Uma delas é dizer de forma franca e aberta
- touradas são um atraso cultural da Espanha
- lançamento de anões é uma barbaridade Australiana
- escorpiões são uma aberração gastronômica da China
- farra do boi é um vexame catarinense
- trotes são um atraso cultural de muitos Estados do Brasil
Acho a Espanha um país maravilhoso, Austrália idem, acho a cultura chinesa fantástica, adoro o maracatu e o frevo de Pernambuco. Florianópolis é uma lindeza. O Piauí tem um dos melhores cursos de medicina do país, mas pratica trotes medievais.
Serem selecionados para a UFRJ é sinal de competência acadêmica, atraso cultural é outra coisa. O rapaz que me deu a ideia, ao mesmo tempo estava feliz por ter levado o trote dos amigos. De minha parte não será admirado por isso, mas por suas notas. Disse isso a ele.
Finalmente, quando escrevi aquilo, imaginei e esperei exatamente reações como estas. Foi intencional. Não que a intenção tenha sido ofender, longe de mim, peço desculpas se isso ocorreu,  mas tive sim a intenção de provocar. Espero sinceramente que mais, muito mais, alunos tenham se sentido incomodados ... e ... reflitam.
Não creio que se conseguirá extinguir essa prática fugindo da discussão, considerando-a natural, etc. etc.
At.
Prof. Ericksson Rocha e Almendra

sexta-feira, março 29, 2013

Inferno, por Dan Brown

24/03/2013 - 08h08

DAN BROWN
tradução FERNANDA ABREU
FABIANO MORAIS
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1250983-inferno-por-dan-brown.shtml

As lembranças se materializaram lentamente, como bolhas vindo à tona da escuridão de um poço sem fundo.
Uma mulher com o rosto coberto por um véu.
Robert Langdon olhava para ela do outro lado de um rio cujas águas agitadas corriam vermelhas, tingidas de sangue. De frente para ele, na margem oposta, a mulher o encarava, imóvel, solene. Trazia na mão uma faixa azul, uma tainia, que ergueu em homenagem ao mar de cadáveres aos seus pés. O cheiro da morte pairava por toda parte.
Busca, sussurrou a mulher. E encontrarás.
Langdon ouviu as palavras como se ela as tivesse pronunciado dentro de sua cabeça. "Quem é você?", perguntou ele, sem que sua voz produzisse som algum.
O tempo urge, sussurrou ela. Busca e encontrarás.
Langdon deu um passo à frente, em direção ao rio, mas então viu que as águas, além de ensanguentadas, eram profundas demais para que ele as atravessasse. Quando tornou a erguer os olhos para a mulher de véu, os corpos aos seus pés tinham se multiplicado. Eram agora centenas, milhares talvez, alguns ainda vivos, contorcendo-se de agonia, padecendo mortes inimagináveis... consumidos pelo fogo, enterrados em fezes, devorando uns aos outros. Podia ouvir os lamentos humanos ecoarem acima da água.
A mulher se moveu em sua direção com as mãos esguias estendidas, como quem pede ajuda.
"Quem é você?!", gritou Langdon outra vez.
Em resposta, a mulher levou a mão ao rosto e ergueu lentamente o véu. Sua beleza era arrebatadora, porém ela era mais velha do que Langdon imaginara: 60 e poucos anos talvez, altiva e forte, como uma estátua atemporal. Tinha um maxilar anguloso, de aspecto severo, olhos penetrantes e intensos e longos cabelos grisalhos, cujos cachos lhe caíam em cascata sobre os ombros. Um amuleto de lápis-lazúli pendia de seu pescoço --uma serpente solitária enroscada em um bastão.
Langdon teve a sensação de que a conhecia, de que confiava nela. Mas como? Por quê?
Ela então apontou para duas pernas que brotavam da terra, se contorcendo. Aparentemente eram de alguma pobre alma enterrada até a cintura, de cabeça para baixo. Uma letra solitária escrita com lama se destacava na coxa pálida do homem: R.
R?, pensou Langdon, intrigado. R de... Robert? Será que esse... sou eu?
O rosto da mulher nada revelava. Busca e encontrarás, repetiu ela.
Subitamente, ela começou a irradiar uma luz branca... cada vez mais forte. Todo o seu corpo começou a vibrar com intensidade e, então, com um estrondo repentino, ela explodiu em mil faíscas.
Langdon acordou sobressaltado, aos gritos.
Estava sozinho no quarto iluminado. O cheiro pungente de álcool hospitalar pairava no ar. Ali perto bipes de máquina soavam em discreta sintonia com o ritmo de seu coração. Tentou mover o braço direito, mas uma dor lancinante o impediu. Olhou para baixo e viu que um cateter intravenoso repuxava a pele de seu antebraço.
Sua pulsação se acelerou e as máquinas acompanharam o ritmo, passando a emitir bipes mais rápidos.
Onde estou? O que aconteceu?
A nuca de Langdon latejava, uma dor torturante. Com cautela, ele ergueu o braço livre e tocou o couro cabeludo, tentando localizar a origem da dor de cabeça. Sob os cabelos emaranhados, encontrou as extremidades duras de uns dez pontos incrustados de sangue seco.
Fechou os olhos e tentou se lembrar de algum acidente.
Nada. Branco total.
Pense.
Apenas escuridão.
Um homem com roupa cirúrgica entrou apressado, aparentemente alertado pela aceleração dos bipes do monitor cardíaco de Langdon. Tinha barba desgrenhada, bigode cerrado e olhos bondosos que irradiavam uma calma atenciosa por baixo das sobrancelhas revoltas.
-- O que... o que houve? -- Langdon conseguiu perguntar. -- Eu sofri algum acidente?
O barbudo levou um dedo aos lábios e tornou a sair às pressas para chamar alguém no corredor.
Langdon virou a cabeça, mas o movimento fez uma pontada de dor atravessar seu crânio. Respirou fundo várias vezes e esperou a dor passar. Então, com cuidado e de forma metódica, examinou o ambiente estéril ao seu redor.
O quarto de hospital continha uma cama só. Não havia flores. Não havia cartões. Viu as próprias roupas em cima de um balcão próximo ao leito, dobradas dentro de um saco plástico transparente. Estavam cobertas de sangue.
Meu Deus. Deve ter sido grave.
Langdon girou a cabeça bem devagar em direção à janela ao lado da cama. Estava escuro lá fora. Era noite. A única coisa que ele conseguia ver no vidro era o próprio reflexo: um desconhecido abatido, pálido e exausto, ligado a tubos e fios e cercado por equipamentos hospitalares.
Ouviu vozes se aproximando pelo corredor e tornou a olhar para o quarto. O médico voltou, dessa vez acompanhado por uma mulher.
Ela parecia ter 30 e poucos anos. Usava roupa cirúrgica azul e tinha os cabelos louros presos em um rabo de cavalo grosso que balançava ao ritmo de seus passos.
-- Sou a doutora Sienna Brooks -- apresentou-se, abrindo um sorriso para Langdon ao entrar. -- Vou trabalhar com o dr. Marconi hoje à noite.
Langdon assentiu com um débil meneio de cabeça.
Alta e graciosa, a dra. Brooks se movia com a desenvoltura assertiva de uma atleta. Mesmo com aquela roupa folgada, conservava uma elegância esguia. Por mais que Langdon não percebesse nenhum traço de maquiagem, sua pele tinha uma suavidade incomum, a única mácula era uma pinta minúscula logo acima dos lábios. Os olhos, de um tom castanho suave, pareciam estranhamente penetrantes, como se houvessem testemunhado experiências de rara profundidade para alguém tão jovem.
-- O dr. Marconi não fala inglês muito bem, então me pediu que preenchesse sua ficha de admissão -- disse ela, sentando-se ao seu lado. Voltou a sorrir.
-- Obrigado.
-- Certo -- começou ela, assumindo um tom de voz sério. -- Qual é o seu nome?
Ele precisou de alguns instantes.
-- Robert... Langdon.
Ela apontou uma lanterninha para seus olhos.
-- Profissão?
Ele respondeu ainda mais devagar:
-- Professor universitário. História da Arte... e Simbologia. Em Harvard.
A dra. Brooks baixou a lanterna, mostrando-se surpresa. O médico de sobrancelhas revoltas pareceu igualmente espantado.
-- O senhor é americano?
Langdon a encarou com um olhar intrigado.
-- É só que... -- Ela hesitou. -- O senhor não tinha documento nenhum quando chegou. Como estava de paletó de tweed da Harris e sapatos sociais, imaginamos que fosse britânico.
-- Eu sou americano -- assegurou-lhe Langdon, exausto demais para explicar sua preferência por alfaiataria de qualidade.
-- Está sentindo alguma dor?
-- Na cabeça -- respondeu Langdon, o latejar em seu crânio agravado pelo brilho forte da lanterna. Felizmente, a médica a guardou no bolso e pegou seu pulso, para medir os batimentos. -- O senhor acordou gritando -- falou. -- Consegue se lembrar por quê?
Langdon voltou a ter um lampejo da estranha visão da mulher de véu, cercada de corpos em agonia. Busca e encontrarás.
-- Tive um pesadelo.
-- Sobre o quê?
Langdon lhe contou.
A dra. Brooks manteve uma expressão neutra enquanto fazia anotações numa prancheta.
-- Alguma ideia do que possa ter provocado uma visão tão apavorante?
Langdon vasculhou a memória e então balançou a cabeça, que latejou em protesto.
-- Muito bem, Sr. Langdon -- disse ela, sem parar de escrever --, agora vou fazer alguma perguntas de rotina. Que dia da semana é hoje?
Langdon pensou por alguns instantes.
-- Sábado. Eu me lembro de estar andando pelo campus hoje mais cedo... de participar de um simpósio à tarde e depois... acho que essa é a última coisa de que me lembro. Eu levei um tombo?
-- Já vamos falar sobre isso. O senhor sabe onde está?
Langdon deu seu melhor palpite:
-- No Hospital Geral de Massachusetts?
A dra. Brooks fez outra anotação.
-- Existe alguém para quem devamos telefonar avisando? Mulher? Filhos?
-- Ninguém -- respondeu Langdon sem precisar pensar.
Sempre gostara da solidão e da independência que sua vida de solteiro lhe oferecia, embora precisasse admitir que, nas condições em que se encontrava, preferiria ter um rosto conhecido ao seu lado.
-- Eu poderia telefonar para alguns colegas, mas não vejo necessidade.
Quando a dra. Brooks terminou de medir o pulso de Langdon, o médico mais velho se aproximou. Alisando as sobrancelhas revoltas, sacou um pequeno gravador do bolso e o mostrou à colega. Ela assentiu, indicando que entendera, e voltou a encarar o paciente.
-- Sr. Langdon, quando chegou hoje mais cedo, o senhor estava murmurando repetidamente uma coisa.
Ela lançou um olhar ao dr. Marconi, que ergueu o gravador digital e apertou um botão.
Uma gravação começou a tocar e Langdon ouviu a própria voz grogue balbuciar repetidas vezes a mesma frase: "Ve... sorry. Ve... sorry."
-- Me parece -- continuou a doutora -- que o senhor estava dizendo "Very sorry. Very sorry".
Langdon concordou, embora não se lembrasse de nada daquilo.
A dra. Brooks o fitou com um olhar tão intenso que chegava a ser perturbador.
-- Tem alguma ideia de por que diria isso? O que o senhor lamenta tanto?
Enquanto se esforçava para tentar lembrar, Langdon tornou a ver a mulher de rosto velado parada à margem de um rio vermelho-sangue, cercada de corpos. Sentiu outra vez o fedor da morte.
Foi invadido pela sensação repentina, instintiva, de que estava correndo perigo... não só ele como todos os demais. Os bipes do monitor cardíaco aceleraram na mesma hora. Seus músculos se retesaram e ele tentou se sentar.
A dra. Brooks se apressou em pousar a mão com firmeza sobre seu peito, forçando-o a se deitar novamente. Então lançou um olhar rápido para o médico barbudo, que foi até um dos cantos do quarto e começou a preparar alguma coisa.
Em pé ao lado de Langdon, a doutora voltou a falar com um sussurro:
-- Sr. Langdon, ansiedade é uma reação comum a traumatismos cranianos, mas o senhor precisa manter sua pulsação baixa. Não deve se mexer nem se agitar, apenas fique deitado e descanse. Vai ficar tudo bem. Aos poucos, vai recuperar a memória.
O outro médico voltou com uma seringa, que entregou à dra. Brooks. Ela injetou o conteúdo no acesso intravenoso de Langdon.
-- É só um sedativo leve para acalmá-lo -- explicou -- e para aliviar a dor. -- Ela se levantou para ir embora. -- Vai ficar tudo bem, Sr. Langdon. Agora durma. Se precisar de alguma coisa, aperte o botão ao lado da cama.
Ela apagou a luz e se retirou junto com o médico barbudo.
No escuro, Langdon sentiu o efeito quase imediato da medicação em seu organismo, arrastando-o de volta para as profundezas do poço do qual havia emergido. Combateu a sensação, forçando os olhos a permanecerem abertos na escuridão do quarto. Tentou se sentar, mas seu corpo parecia feito de concreto.
Ao mudar de posição na cama, Langdon se viu outra vez de frente para a janela. As luzes estavam apagadas e, no vidro escuro, seu próprio reflexo havia desaparecido, substituído por um horizonte distante e iluminado.
Em meio às silhuetas de torres e domos, uma fachada em especial se destacava em seu campo de visão. A construção era uma imponente fortaleza de pedra, com ameias no parapeito e uma torre de mais de 90 metros, que ficava mais larga perto do topo projetado para fora, também com ameias munidas de balestreiros.
Langdon se sentou na cama com as costas eretas, fazendo a dor na cabeça explodir. Lutou contra o latejar violento e fixou o olhar na torre.
Conhecia bem aquela estrutura medieval.
Era única no mundo.
Infelizmente, porém, ficava a quase 6.500 quilômetros de Massachusetts.
Do lado de fora, escondida nas sombras da Via Torregalli, uma mulher robusta desmontou sem o menor esforço de uma moto BMW e avançou com o andar decidido de uma pantera que persegue sua presa. Tinha um olhar feroz. Os cabelos curtos e espetados se destacavam contra a gola levantada de uma jaqueta de couro preta. Ela verificou a arma equipada com silenciador que trazia nas mãos e ergueu os olhos para a janela do quarto de Robert Langdon, onde a luz acabara de se apagar.
Mais cedo naquela mesma noite, sua missão original dera terrivelmente errado.
O arrulho de uma simples pomba havia mudado tudo.
Agora ela estava lá para consertar o estrago.

quinta-feira, março 28, 2013

Sarney sobre FHC na ABL: “de minha parte, vou votar nele”…

http://www.marcoaureliodeca.com.br/

O ex-presidente da República e do Congresso Nacional, senador e escritor José Sarney (PMDB), é um dos principais apoiadores da candidatura do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) à Academia Brasileira de Letras.
- Ele tem uma obra sociológica de destaque, está qualificado para a vaga. De minha parte, vou votar nele - disse Sarney.
Sociológo e autor de vasta obra acadêmica, FHC anunciou sua candidatura ontem. A escolha do novo acadêmico deverá ser feita em maio. A cadeira vaga pertencia ao acadêmico João de Scantimburgo, jornalista ex-diretor dos Diários Associados.
De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, foi o próprio José Sarney quem convidou o colega a inscrever-se na ABL. O ex-presidente recebeu convite também da escritora Nelida Piñon.
FHC e Sarney jantarma semana passada, em São Paulo.
- Depois de tantos amigos insistindo comigo tantas vezes, acabei cedendo. Minha reticência sempre foi a de que não sou homem de letras e não queria criar constrangimentos por ter sido presidente da República. Mas agora, passados tantos anos da presidência e mantida, se não mesmo que ampliada, a convicção de vários membros da ABL de que eu deveria juntar-me a eles, acabei por concordar - explicou FHC.
O ex-presidente já mteria a maioria dos 38 votos da Academia…

terça-feira, março 26, 2013

Lech Walesa diz que minoria gay "persegue e castiga" heterossexuais

http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2013/03/26/lech-walesa-diz-que-minoria-homossexual-persegue-e-castiga-heterossexuais.htm


Em Varsóvia





O prêmio Nobel da Paz e ex-presidente polonês Lech Walesa disse nesta terça-feira que suas opiniões sobre a homossexualidade levaram ao cancelamento de suas duas conferências nos Estados Unidos, o que demonstra que a minoria gay é "efetiva" e "persegue e castiga a maioria".

Walesa, considerado o herói na luta contra o comunismo e símbolo da chegada da democracia à Polônia, disse há algumas semanas que os homossexuais "deveriam se sentar na última fila do Parlamento ou até mesmo atrás de um muro", e não pretender impor suas posturas minoritárias frente à maioria da população.

Em entrevista à emissora "RMF", Walesa lamentou hoje que as declarações tenham levado ao cancelamento de duas conferências nos Estados Unidos e que ele tenha deixado de ganhar US$ 70 mil.
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Veja fotos das Paradas Gay pelo mundo200 fotos

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18.jun.2012 - Beijo gay também marcou a 17ª Parada do Orgulho LGBT, popularmente conhecida como Parada Gay, na tarde deste domingo (18), na orla de Copacabana. Com o lema "Coração não tem preconceitos. Tem amor", o evento reuniu cerca de 1,5 milhão de pessoas na capital fluminense, segundo a Polícia Militar. O número é 500 mil a mais do que o esperado pela organização Guillermo Giansanti/UOL
O político se considera uma "vítima" do "lobby gay", que acusa de "usar sua influência diretamente" contra ele e de ser uma força que se baseia "na dor e no ressentimento".
Após as declarações polêmicas, várias organizações de gays e lésbicas o acusaram de ser um inimigo das minorias, de representar a extrema direita e de ser um antidemocrata.

"Têm que fazer alarde (de sua tendência sexual) diante da maioria?" questionou novamente hoje o político polonês, se referindo à parada anual do orgulho gay em Varsóvia e outras cidades do mundo.
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Franceses protestam contra casamento gay11 fotos

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24.mar.2013 - Vestindo trajes da Revolução Francesa, mulheres participam de protesto nas ruas de Paris contra o projeto de lei que autoriza o casamento gay e adoção de crianças por casais do mesmo sexo na França. O projeto deve ser votado no Senado em abril. Outra manifestação contra a lei foi realizada na cidade em janeiro deste anoLeia mais Pierre Andrieu/AFP
"Deveriam ser recatados, se fechar a sua intimidade, não mostrar (sua sexualidade)", queixava-se o ex-líder do Solidariedade.
A Polônia é um dos países mais conservadores e católicos da Europa, embora, paradoxalmente, seu Parlamento tenha um deputado abertamente homossexual, Robert Biedron, e um parlamentar transexual, Anna Grodzka, ambos do partido anticlerical Movimento Palikot.

Lech Walesa, que tem oito filhos e é reconhecidamente um católico praticante, foi o primeiro presidente da Polônia democrática e suas opiniões ainda são referência entre grande parte da sociedade polonesa.
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EUA: Suprema Corte discute casamento gay13 fotos

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25.mar.2013 - Ativistas a favor do casamento homossexual fazem fila nesta segunda-feira (25) em frente ao prédio da Suprema Corte dos EUA, em Washington. A Justiça do país vai julgar casos notórios de casais gays que querem oficializar a união. Nove dos 50 Estados do país permitem o matrimônio homossexual Leia mais Nicholas Kamm/AFP

domingo, março 24, 2013

“A PORTA VAI ESTAR SEMPRE ABERTA...”


O Grande Prêmio da Malásia de Fórmula 1, disputado neste domingo das 5 até as sete da manhã, teve vários momentos dignos de nota.
            Coloco em primeiro lugar na lista de excepcionalidades da prova o erro na largada que custou a Felipe Massa um lugar no pódio.
            Como se sabe, na Ferrari a questão do “primeiro” e do “segundo” pilotos é rigorosamente definida e não está aberta a discussões. Em sua passagem pela escuderia de Maranello, por exemplo, Rubens Barrichello poucas vezes brilhou ao volante do tradicional bólido vermelho porque o grande astro mesmo era Michael Schumacher.
            Em Sepang, hoje, logo após o apagar das luzes vermelhas Massa preocupou-se demais em servir de “fiel guarda-costas” para Fernando Alonso. Tinha muito mais carro que o príncipe das Astúrias, poderia tê-lo ultrapassado com facilidade e sem dúvida alguma, pelo acerto na estratégia dos pneus que o fez no fim da corrida sair de oitavo para receber a bandeirada em quinto, poderia ter colocado água no chope das Red Bulls e Mercedes - que dominaram amplamente as 56 voltas da prova.
            Aliás, as equipes recém-mencionadas protagonizaram o segundo e o terceiro bom momento da jornada na Malásia.
            A exemplo de Barrichello, o australiano Mark Webber é um ótimo piloto. Mas também assim como o brasileiro não conseguiu (ainda, posto que continua em atividade na Fórmula 1) a condição de campeão mundial. Seu companheiro de equipe, Sebastian Vettel já tem três títulos, todos conquistados com méritos, e aparentemente por causa disso Webber cansou-se de ficar à sombra do alemão mais bem-sucedido. Ora, Vettel quer fazer história na categoria. Quer levar para casa o quarto caneco. Daí o combate emocionante dos “colegas” pela vitória, que acabou ficando com Vettel por ele ter colocado a famosa “faca nos dentes” e ter visto o muro da reta dos boxes bem próximo, em um lance muito parecido com a arriscada ultrapassagem de Barrichello sobre Schumacher na Hungria em 2010.
            Enquanto os dois pilotos da Red Bull “se pegavam” pelo lugar mais alto do pódio, o mesmo acontecia com os da Mercedes pelo terceiro posto. Quem assistiu achou engraçado, mas se estivesse no lugar de Ross Brawn (e no de Christian Horner, da Bull), também entraria em desespero com a enorme possibilidade de seus comandados na pista baterem um no outro e atirarem no lixo uma corrida perfeita. Por isso Brawn, via rádio, precisou de um tanto de grosseria para impedir Rosberg de ultrapassar Lewis Hamilton – que chegou a sua nova equipe com o objetivo de ser o tal do “primeirão”. Não sairia da McLaren se tivesse em mente algo que não fosse essa possibilidade.
            E por falar em Hamilton, chegou a vez de deixar registrado o grande lance da corrida em Sepang. Estrelado justamente pelo excelente piloto inglês na ocasião de seu primeiro pit stop. Talvez porque a prova estivesse ainda no princípio, o desconcentrado Hamilton, em vez de estacionar no box da Mercedes, parou no da McLaren. Sua namorada, a linda Nicole Scherzinger, riu demais da cena. Não mais do que os mecânicos do time anterior do “artista”. A equipe acabou publicando uma mensagem galhofeira a respeito da lambança: “Pode aparecer para nos visitar quando quiser”.
            Agora, caso fosse dado ao romantismo, o pessoal da McLaren poderia ter lembrado de “Espumas ao vento”: “E de uma coisa fique certa, amor/ A porta vai estar sempre aberta, amor/ O meu olhar vai dar uma festa, amor/ Na hora que você chegar”.

quinta-feira, março 21, 2013

'Rastreamento de ligações...'

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/pasquale/1249765-rastreamento-de-ligacoes.shtml


Na semana passada, durante o julgamento de Mizael Bispo de Souza, um site de notícias publicou o seguinte título: "Rastreamento de ligações de Mizael contrariam suas falas".
Se o caro leitor vasculhar questões elaboradas pelas bancas de importantes vestibulares e concursos públicos do país (a começar pelo da Unicamp, por exemplo), verá que volta e meia se pede a análise de fatos linguísticos como o que se vê no título citado. Os itens da questão seriam mais ou menos estes: 1) Há uma forma inadequada no trecho transcrito. Identifique-a. 2) Qual é a forma que deveria ter sido empregada? 3) Há um motivo para esse tipo de desvio. Comente.
É bem provável que o caro leitor e boa parte dos alunos que respondem a esse tipo de questão acertem de bate-pronto os dois primeiros itens da questão; o terceiro item talvez cause alguma dificuldade.
Pois bem. A forma inadequada é "contrariam", que deveria ser substituída por "contraria", já que o núcleo de "rastreamento de ligações" (sujeito da oração) é "rastreamento", e não "ligações". Como se sabe, grosso modo o verbo concorda com o núcleo do sujeito, e não com os seus "penduricalhos".
E o terceiro item, de longe o mais importante da questão? Qual será o motivo do "desvio"? O motivo é simples: temos aí o fenômeno da contaminação ou o efeito da proximidade etc., que explicam muitos dos fatos da língua. Quando diz ou escreve "Rastreamento de ligações de Mizael contrariam suas falas", o falante se deixa levar pela proximidade de "ligações" com o verbo, ou seja, leva em conta o elemento mais próximo do verbo para estabelecer a concordância.
Isso explica o desvio, mas não o legitima, como se depreende do próprio enunciado proposto pelas bancas ("Há uma forma inadequada..."). De fato, no padrão formal da língua, construções como a que analisamos não ocorrem ou, se/quando ocorrem, decorrem de cochilos, aos quais todos estamos mais do que sujeitos.
Esse desvio torna-se mais comum à medida que aumenta o número de "penduricalhos" do núcleo do sujeito flexionados no plural. Se a pressa é o motor da redação, então, a coisa se agrava. De fato, nos textos publicados pelos mais diversos meios de comunicação, não faltam exemplos de construções como "O custo dos alimentos industrializados produzidos com grãos subiram 10% no mês passado" ou "O valor dos aluguéis de apartamentos pequenos situados nos bairros centrais das grandes cidades brasileiras aumentaram muito no semestre passado".
O caro leitor percebeu onde está o nó em cada uma das frases? Na primeira, o redator se deixou levar pela interminável lista de "penduricalhos" do núcleo do sujeito, todos no plural. É como se houvesse um diabinho na orelha do redator repetindo sem parar algo como "Ponha o verbo no plural!". E o diabinho ganha a parada. A forma inadequada é "subiram", que deve ser trocada por "subiu", em concordância com "custo", núcleo do sujeito: "O custo dos alimentos industrializados (...) subiu...".
No segundo caso, o cochilo é semelhante, já que o verbo ("aumentaram") foi indevidamente posto no plural, por influência da também enorme lista de "penduricalhos" do núcleo do sujeito. A forma adequada é "aumentou", em sintonia com o núcleo do sujeito ("valor"): "O valor dos aluguéis (...) aumentou...".
A esta altura, talvez alguém esteja dizendo que esse tipo de desvio não muda o preço do feijão, ou seja, não prejudica ou impede a compreensão do texto. Sim, isso é fato, mas o emprego da forma adequada não revela apenas um mero acerto "gramatical"; revela uma das faces do domínio da estrutura da frase. Não me parece necessário explicar os benefícios decorrentes desse domínio, certo? É isso.
Pasquale Cipro Neto
Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".